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SANTA MISSA PARA O JUBILEU DAS CONFRARIAS

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

Praça de São Pedro
Domingo, 1 de abril de 1984

 

1. "Eu sou a Luz do mundo" (Jo. 8, 12).

"Enquanto estou no mundo, sou a Luz do mundo" (Jo. 9, 5).

Jesus Cristo está no mundo. Está no meio dos homens. Principalmente entre os infelizes. O Evangelho todo confirma-o.

Hoje, no centro do Evangelho e no centro da liturgia encontra-se Jesus e um homem cego de nascença. Cristo restitui-lhe a vista e faz isto num sábado.

Ele opera este milagre, por certos aspectos, de um modo "ritual". Antes mistura o pó da terra com a saliva e unta com ele os olhos do cego. Em seguida ordena-lhe que se lave na piscina de Siloé. Depois de se te lavado, o cega de nascença readquire a vista.

Com este sinal Jesus de Nazaré manifesta-se como luz do mundo, antes de mais, porque torna possível a vista ao homem cego: a vista é a capacidade de contacto com a luz do mundo exterior.

Depois, porque liberta este homem da cegueira de espírito. Abre os olhos da alma dele para Deus e para os Seus mistérios. Uma tal abertura da alma chama-se fé, que significa estar em contacto com a luz do mundo interior. O homem cego de nascença, depois de ter readquirido a capacidade de ver, abre-se ao mesmo tempo para o mistério de Cristo. Confessa a fé no Filho do Homem.

"Tu crês no Filho do Homem?", pergunta Jesus (Jo. 9, 35).

"Quem é Ele, Senhor, para que n'Ele creia?", responde o homem curado (ibid. v. 36).

"Tu já O viste; é Aquele que fala contigo" (ibid. v. 37).

"Creio, Senhor!", e prostra-se diante d'Ele (ibid. v. 38).

O evento, que lemos na liturgia deste quarto Domingo da Quaresma, leva-nos a reflectir sobre a nossa fé em Cristo — Filho do Homem, em Cristo, Luz do mundo. Indirectamente este evento refere-se também ao Baptismo, que é o primeiro sacramento da fé: o sacramento que abre os olhos, mediante o renascimento por meio da água e do Espírito Santo; tal como aconteceu com o cego de nascença, cujos olhos se abriram, depois de se ter lavado na égua da piscina de Siloé.

2. O evento narrado na liturgia de  hoje mostra-nos também que a fé do homem, renascido pelo poder de Cristo, encontra a desconfiança e, até mesmo, a incredulidade.

Num certo sentido ele deve caminhar através desta desconfiança e incredulidade. Assim caminha a fé do cego de nascença, a quem Cristo restituiu a vista. A sua fé no Filho do Homem encontra a oposição dos fariseus, a incredulidade deles. Não é fácil a um homem socialmente deficiente opor a esta incredulidade a própria fé. Todavia, diante de todas as acusações, que os seus interlocutores apresentam a respeito de Jesus, ele tem um argumento irrefutável: restituiu-me a vista: "havendo sido cego, agora vejo" (ibid., v. 25).

Além da decisiva incredulidade, o homem curado da cegueira congénita, encontra também temor e medo, até da parte dos próprios pais, que preferem não expor-se às represálias dos fariseus influentes: "Sabemos que este é o nosso filho que nasceu cego, mas como agora vê, não sabemos, nem quem lhe tenha aberto os olhos; tem idade pergunta-lho e ele falará por si mesmo" (ibid., v v. 2Q-21).

Assim, pois, a fé do homem, a quem Cristo restituiu a vista, passa através de uma dura prova, mas sai vitoriosa. A luz incutida por Cristo na sua alma — não só nos seus olhos demonstra-se mais forte do que a incredulidade e a desconfiança, revela-se também mais forte do que os tenores humanos e a mesma vontade de intimidar.

Tudo isto tem a sua eloquência não só no contexto deste homem concreto e deste concreto evento (que no Evangelho de João é descrito de um modo extraordinariamente detalhado), mas também no contexto da vida e do comportamento de todos os homens, de cada cristão.

A fé de cada um de nós, porventura não está exposta à nossa própria fraqueza?  —  e também à incredulidade, à desconfiança, às dúvidas, à pressão da opinião e, às vezes, ao medo, à discriminação e à perseguição?

Pensamos hoje em todos os homens no mundo inteiro, em todos aqueles a quem Cristo concedeu a sua luz: a quantas dificuldades, opressões, perseguições, está exposta a fé de muitos deles! E quão frequentemente a fé deve lutar com as fraquezas de cada um de nós!

Peçamos uma fé forte. Peçamos a coragem da fé.

3. Por isso a liturgia deste Domingo se dirige a Cristo — Pastor, pois só Ele nos conduz pelos caminhos da fé:

"O Senhor é o meu pastor... / e conduz-me às águas refrescantes. / Reconforta a minha alma, guia-me pelos caminhos rectos. / por amor do Seu nome" (Sl. 22/23, 1-3).

Daqui haurianos força e coragem no meio de todas as provas e experiências:

"Mesmo que atravesse os vales sombrios, / nenhum mal temerei, porque estais comigo" (ibid., v. 4).

O homem, a quem Cristo restituiu a vista dos sentidos e ao mesmo tempo os olhos da alma, tem esta consciência, de que o Bom Pastor está com ele. É Ele a guiá-lo à mesa da Eucaristia, na qual o peregrino no tempo restaura as forças da sua alma para o caminho da eternidade.

"Preparais-me um banquete diante dos meus inimigos. / Ungis com óleo a minha cabeça... (ibid., v. 5).

A união é o símbolo da força espiritual. A fé constitui uma específica síntese de luz e de força de espírito, que provêm de Deus, e a liturgia deste Domingo ressalta isto.

Da unção fala-nos a primeira leitura do Livro de Samuel: O Profeta, enviado à casa de Jessé, um dos anciãos de Belém, unge o mais novo dos filhos: David, como futuro rei de Israel. "... E a partir daquele dia o Espírito do Senhor apoderou-se de David" (1 Sam. 16, 13) — lemos. A unção — tal como o lavar-se com água —  é um "rito" exterior, que exprime um conteúdo interior, espiritual e sobrenatural.

Aquele que acredita, acolhe a luz de Cristo e ao mesmo tempo, em virtude do Espírito Santo, acede à participação na tríplice missão de Cristo: de profeta, de sacerdote e de rei. Mediante esta participação une a sua vida e o próprio comportamento à missão salvífica do Bom Pastor, dirigida a toda a humanidade e ao Mundo inteiro. O Bom Pastor, de fato, é o Redentor do mundo, e todos os que, mediante a fé, a esperança, e o amor, pertencem ao Seu rebanho, participam do poder do mistério da Redenção.

4. Caros peregrinos, guiados por profunda fé, viestes em peregrinação a Roma, para renovar, junto dos túmulos dos Apóstolos e dos Mártires, a vossa participação na missão salvífica de Cristo, no mistério da Redenção do mundo, por ocasião do Ano jubilar da Redenção.

Neste sinal de Cristo-Luz, de Cristo Pastor, de Cristo Redentor do mundo, apraz-me deter-me convosco a considerar o valor das Confrarias a que pertenceis.

A origem delas — como bem sabeis — remonta ao início do século XI, quando grupos de cristãos fervorosos se formam à volta dos mosteiros da Alemanha, da França, da Calábria, da Toscana e de outras regiões italianas. A benemérita actividade delas desenvolve-se em sintonia cada vez maior com a Igreja, até à máxima expansão nos séculos XIII-XIV com os Irmãos e as Irmãs da Penitência, instituídos no âmbito das novas Ordens de São Francisco e de São Domingos, como também de outros institutos religiosos. Nos anos de 1500 nascem os Oratórios, ligados às Confrarias ou Companhias, como o Oratório do Divino Amor, surgido em Roma em 1517, ou os Oratórios de São Filipe Neri, tão beneméritos pela vida espiritual e pela assistência aos pobres e aos peregrinos. Pode-se antes dizer que até ao século XVII a caridade da Igreja é exercida de modo especial mediante estes Oratórios e Confrarias. De entre estas devem ser recordadas as "Misericórdias" toscanas, ainda hoje florescentes e operosas.

As finalidades das Confrarias podem ser resumidas em três palavras: culto, beneficência e penitência.

a) Antes de mais elas cuidaram do culto de Deus, de Jesus, de Maria (de modo especial com o Santo Rosário), dos Santos, em particular dos Padroeiros locais, e das almas do Purgatório, pelas quais faziam abundantes sufrágios. Empenharam-se de modo particular, como ainda hoje acontece em algumas nações da Europa ou da América Latina, na comemoração dos mistérios da Paixão e Morte de Nosso Senhor durante a Semana Santa, com procissões e representações de grande eficácia espiritual.

b) A beneficência foi depois, segundo os ensinamentos da Igreja propostos, praticada nas Obras de Misericórdia espiritual e corporal.

Ela traduziu-se também em gestos de solidariedade social, de modo especial no século XIII, quando, com a formação das "artes" e corporações, os seus membros se associaram também em confrarias correspondentes às várias profissões, desenvolvendo um papel decisivo para a consolidação da solidariedade e fraternidade cristãs, para a fusão de classes sociais, para a actuação de obras assistenciais, especialmente hospitalares, e não raro de obras públicas.

c) A penitência foi também um dos objectivos das Confrarias, que entendiam cuidar da formação e do aperfeiçoamento moral dos próprios associados, e implorar a divina clemência em tempos de graves calamidades naturais ou de decadência dos costumes.

5. Mas para além destes objectivos específicos, havia um motivo mais profundo que levava os fiéis a associarem-se: "Pro Dei timore et Christi amore", isto é, pelo santo temor de Deus e por amor de Cristo!

Eis-nos de novo diante de Cristo Pastor e Redentor, de Cristo Luz da vida, de Cristo que atrai a Si os homens, de Cristo que ensina e ajuda a conciliar, no espírito humano e na prática da vida cristã, o temor e o amor de Deus, a penitência e a alegria, a piedade e o entusiasmo da acção.

Como outrora, também hoje, Cristo chama os homens à fé, à caridade e à esperança: e de entre os que O seguem, escolhe os discípulos e os apóstolos aos quais confia a tarefa de testemunhar, pregar e actuar no mundo o Evangelho.

Esta escolha tem valor também para os que se reúnem nas Confrarias, a fim de desenvolverem as actividades delas, em formas antigas e novas, no tríplice campo tradicional do culto, da beneficência e da penitência, e a fim de acentuarem, segundo as indicações do Concílio Vaticano II (cf. Lumen Gentium, 33-36 Apostolicam Actuositatem, 6-8, 12, 13, 18-19) e do novo Código de Direito Canónico (cân. 298), o compromisso apostólico das suas associações. Na história das Confrarias existem não poucos precedentes dessa destinação ao apostolado: como nas Companhias do Divino Amor, já recordadas, e nas Confrarias da Doutrina Cristã surgidas por obra de São Carlos Borromeu e do Concílio de Trento e estendidas pela Igreja em todas as paróquias.

Hoje a urgência da evangelização exige que também as Confrarias participem de modo mais intenso e mais directo na obra que a Igreja realiza para levar a luz; a Redenção e a graça de Cristo aos homens do nosso tempo, tomando oportunas iniciativas, seja para a formação religiosa, eclesial e Pastoral dos seus membros, seja em favor das várias camadas sociais em que é possível introduzir o fermento do Evangelho.

Para este objectivo apostólico pode e deve servir também o imponente património artístico acumulado pelas Confrarias nos seus Oratórios e Igrejas; a grande quantidade de hábitos, insígnias, estátuas, crucifixos (Como os trazidos aqui, hoje, pelas gloriosas "casasse" de Génova e Ligúria), com que as Contrarias intervêm em funções e procissões sacras; a incidência que ainda hoje as manifestações das Confrarias podem ter não só na esfera da prática religiosa, mas também no campo do "folclore" inspirado pela tradição cristã: tudo pode e deve servir para o apostolado eclesial, especialmente litúrgico e catequético.

6. Estou feliz, como Bispo de Roma, de poder juntamente convosco, neste Domingo da Quaresma, adorar a Cristo, que é a nossa Luz.

Assim como Ele restituiu a vista ao cego de nascença, assim também nos dá a vista da Fé.

São Paulo escreve na carta aos Hebreus quase referindo-se ao hodierno Evangelho de São João: "Outrora éreis trevas, mas agora sois luz no Senhor. Comportai-vos como filhos da luz".

Por isto está escrito: "Ó tu, que dormes, desperta. Levanta-te do meio dos mortos, e Cristo brilhará para ti" (Ef. 5, 8-1014).

Nesta frase ressoa a voz da Páscoa já próxima. Para esta Páscoa do Ano jubilar da Redenção preparai-vos, caros Irmãos e Irmãs, com grande abertura de espírito.

"Cristo vos ilumine" de novo.

Oxalá Ele resplandeça nas venerandas tradições das vossas associações e comunidades; na vossa vida familiar e profissional; nas vossas paróquias e dioceses.

"O fruto da luz consiste na bondade, na justiça e na verdade".

Cristo — crucificado e ressuscitado ilumine mediante vós todos homens de boa vontade!

 



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