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MENSAGEM  DO PAPA JOÃO PAULO II
PARA O 85º DIA MUNDIAL
DOS MIGRANTES E DOS REFUGIADOS

 

Caríssimos Irmãos e Irmãs!

1. O Jubileu, do qual nos estamos a aproximar a largos passos, representa para todos um extraordinário momento de graça e de reconciliação. Este empenha de maneira singular também o mundo dos migrantes, em virtude das estreitas analogias entre a sua condição e a dos crentes: «Toda a vida cristã - escrevi na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente - é como uma grande peregrinação para a casa do Pai» (n. 49). Neste Dia Mundial dos Migrantes, que coincide com o terceiro ano de preparação para o Jubileu, quereria desenvolver algumas considerações à luz desta constatação, a fim de contribuir também desta forma para «alargar os horizontes do crente até à própria perspectiva de Cristo: a perspectiva do 'Pai que está nos céus', que O enviou e a Quem Ele retornou» (Ibidem).

2. «... a terra me pertence, e vós sois para mim imigrantes e hóspedes» (Lv 25, 23). Nestas palavras do Senhor, referidas no Livro do Levítico, está contida a motivação fundamental do Jubileu bíblico ao qual corresponde, nos descendentes de Abraão, a consciência de serem hóspedes e peregrinos na terra prometida.

O Novo Testamento estende esta convicção a cada discípulo de Cristo que, sendo cidadão da pátria celeste e compatriota dos santos (cf. Ef 2, 19), não tem uma morada estável na terra e vive como um forasteiro (cf. 1 Pd 2, 11), sempre à procura da meta definitiva.

Estas categorias bíblicas voltam a ser significativas no actual contexto histórico, vigorosamente assinalado por consistentes fluxos migratórios e por um crescente pluralismo étnico e cultural. Além disso, elas sublinham que a Igreja, presente debaixo de todos os céus, não se identifica com qualquer etnia ou cultura porque, como recorda a Carta a Diogneto, os cristãos «vivem na sua pátria, mas como peregrinos; participam em tudo como cidadãos e de tudo são desapegados como forasteiros. Cada terra estrangeira lhes é pátria, e cada pátria lhes é terra estrangeira... Habitam na terra, mas têm a sua cidadania no céu» (5, 1).

A Igreja é por sua natureza solidária com o mundo dos migrantes que, com a sua variedade de línguas, raças, culturas e costumes, lhe recordam a sua condição de povo peregrinante de todas as partes da terra, rumo à Pátria definitiva. Esta perspectiva ajuda os cristãos a abandonar toda a lógica nacionalista e a subtrair-se às angustas esquematizações ideológicas. Ela recorda-lhes que o Evangelho deve encarnar-se na vida, a fim de se tornar fermento e alma, graças também ao constante compromisso de o libertar daquelas incrustações culturais que obstam o seu íntimo dinamismo.

3. Deus manifesta-se no Antigo Testamento como Aquele que se põe ao lado do estrangeiro, isto é, ao lado do povo de Israel escravo no Egipto. Na Nova Lei Ele revela-se em Jesus, nascido num estábulo na periferia da cidade, «pois não havia lugar para eles na hospedaria» (Lc 2, 7), e sem ter um lugar onde repousar a cabeça no decurso do seu ministério público (cf. Mt 8, 20; cf. também Lc 9, 58). Depois a Cruz, centro da revelação cristã, constitui o momento culminante desta radical condição de estrangeiro: Cristo morre «fora de Jerusalém» (Hb 13, 12), rejeitado pelo seu povo. Todavia, o evangelista João recorda as palavras proféticas de Jesus: «Quando Eu for levantado da terra, atrairei todos a mim» (12, 32), e sublinha que precisamente mediante a sua morte Ele começará a «reunir os filhos de Deus que estavam dispersos» (11, 52). Seguindo o exemplo do Mestre, também a Igreja vive a sua presença no mundo em atitude de peregrina, empenhando-se em fazer-se criadora de comunhão, casa acolhedora em que cada homem é reconhecido na dignidade que lhe foi conferida pelo Criador.

4. As diferenças étnicas e culturais, que existem no seio da Igreja, poderiam constituir uma fonte de divisão ou de dispersão, se a Igreja não contivesse em si mesma a força coesiva da caridade, virtude que todos os cristãos são convidados a viver de modo particular neste último ano de preparação imediata para o Jubileu. Na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente, escrevi: «Convirá, portanto, especialmente neste ano, pôr em relevo a virtude teologal da caridade, recordando a sintética e densa afirmação da primeira Carta de João: 'Deus é amor' (4, 8.16). A caridade, na sua dupla face de amor a Deus e aos irmãos, é a síntese da vida moral do crente. Ela tem em Deus a sua nascente e a sua meta de chegada» (n. 50).

«Ama o teu próximo como a ti mesmo» (Lv 19, 18). No Livro do Levítico, esta formulação aparece no contexto de uma série de preceitos que proíbem a injustiça. Um destes admoesta: «Quando um imigrante habitar convosco no país, não o oprimais. O imigrante será para vós um concidadão: amá-lo-ás como a ti mesmo, porque fostes imigrantes na terra do Egipto. Eu sou Javé, vosso Deus» (19, 33-34).

A motivação «porque fostes imigrantes na terra do Egipto», que acompanha constantemente o mandamento de respeitar e amar o migrante, não visa apenas recordar ao povo eleito a sua condição passada; esta quer também chamar a sua atenção para o comportamento de Deus que, com generosa iniciativa, libertou o seu povo da escravidão e gratuitamente lhe concedeu uma terra. «Eras escravo e Deus interveio para te libertar; portanto, viste como Deus se comportou com o migrante; também tu faz a mesma coisa»: esta é a reflexão implícita, subjacente ao preceito.

5. No Novo Testamento todas as distinções entre os seres humanos terminam com a supressão, por obra de Cristo, do muro de divisão entre o povo eleito e os pagãos. «Cristo - escreve São Paulo - é a nossa paz. De dois povos, Ele fez um só. Na sua carne, derrubou o muro da separação: o ódio» (Ef 2, 14). Com a Páscoa de Cristo, já não existem o vizinho e o distante, o judeu e o pagão, o aceite e o excluído.

Para o cristão, cada homem é o «próximo» que deve ser amado. Ele não se interroga sobre quem deve amar, porque perguntar-se «quem é o meu próximo» já significa pôr limites e condições. Certo dia, esta pergunta foi dirigida a Jesus, que respondeu invertendo-a: o legítimo interrogativo não consiste já em «quem é o meu próximo?», mas «de quem me devo fazer próximo?». E a resposta é: «Quem se encontra em necessidade, mesmo que me seja desconhecido, torna-se para mim um próximo a ajudar». A parábola do bom samaritano (cf. Lc 10, 30-37) convida cada um a ultrapassar os confins da justiça, na perspectiva do amor gratuito e incondicional.

Além disso, para o fiel a caridade é dádiva de Deus, carisma que, como a fé e a esperança, é efundido em nós mediante o Espírito Santo (cf. Rm 5, 5): enquanto dom de Deus, ela não é utopia, mas concretitude; é boa notícia, Evangelho.

6. A presença do migrante interpela a responsabilidade dos crentes como indivíduos e como comunidade. Além disso, uma expressão privilegiada da comunidade é a paróquia. Como recorda o Concílio Vaticano II, esta «oferece um modelo claro de apostolado comunitário, pois congrega na unidade todas as diversidades humanas que nela se encontram e insere-as na Igreja universal» (Apostolicam actuositatem, 10). A paróquia é um lugar de encontro e de integração de todas as componentes de uma comunidade. Esta torna visível e sociologicamente reconhecível o projecto de Deus, de convidar todos os homens à aliança sancionada por Cristo, sem qualquer excepção ou exclusão.

A paróquia, que etimologicamente designa uma habitação em que o hóspede está à vontade, acolhe todos e não discrimina ninguém, porque ninguém lhe é estranho. Ela une a estabilidade e a segurança de quem se encontra na própria casa com o movimento ou o carácter provisório de quem está de passagem. Onde o sentido da paróquia é vivo, diminuem ou desaparecem as diferenças entre nativos e estrangeiros, porque prevalece a consciência da comum pertença a Deus, único Pai.

Da missão própria de cada comunidade paroquial e do significado que esta reveste no seio da sociedade emerge a importância que a paróquia tem no acolhimento do estrangeiro, na integração dos baptizados de diferentes culturas e no diálogo com os crentes de outras religiões. Para a comunidade paroquial esta não é uma actividade facultativa de suplência, mas um dever inerente à sua tarefa institucional.

A catolicidade não se manifesta somente na comunhão fraterna dos baptizados, mas exprime-se também na hospitalidade assegurada ao estrangeiro, qualquer que seja a sua pertença religiosa, na rejeição de toda a exclusão ou discriminação racial e no reconhecimento da dignidade pessoal de cada um, com o consequente compromisso de promover os seus direitos inalienáveis.

Neste contexto, os sacerdotes chamados a ser ministros de unidade na comunidade paroquial têm um papel relevante. Eles «recebem de Deus a graça de serem ministros de Jesus Cristo no meio dos povos, desempenhando o sagrado ministério do Evangelho, para que seja aceite a oblação dos mesmos povos, santificada no Espírito Santo» (Presbyterorum ordinis, 2).

Ao encontrarem na quotidiana celebração do Sacrifício divino o mistério de Jesus, que deu a sua vida para congregar na unidade os filhos dispersos, eles são solicitados a colocar-se com ardor sempre novo ao serviço da unidade de todos os filhos do único Pai celeste, esforçando-se para que cada um tenha o próprio lugar na comunhão fraterna.

7. «Recordando que Jesus veio evangelizar os pobres, como não sublinhar com maior decisão a opção preferencial da Igreja pelos pobres e os marginalizados?» (Tertio millennio adveniente, 51). Este interrogativo, que interpela cada comunidade cristã, põe em evidência o louvável compromisso de muitas paróquias nos bairros em que se verificam fenómenos como o desemprego, a concentração de homens e mulheres de várias proveniências em espaços insuficientes, a degradação vinculada à pobreza, a escassez de serviços e a insegurança. As paróquias constituem pontos de referência visíveis, facilmente identificáveis e acessíveis, e são um sinal de esperança e de fraternidade, não raro entre evidentes dilacerações sociais, tensões e explosões de violência. A escuta da mesma Palavra de Deus, a celebração das mesmas liturgias e a comemoração das mesmas festividades e tradições religiosas ajudam os cristãos do lugar e todos aqueles de recente imigração a sentirem-se membros de um único povo.

Num ambiente nivelado e uniformizado pelo anonimato, a paróquia constitui um lugar de participação, de convivência e de reconhecimento recíproco. Contra a insegurança, ela oferece um espaço de confiança em que se aprende a superar os próprios temores; na ausência de pontos de referência dos quais haurir luz e estímulos para viver juntos, esta apresenta um caminho de fraternidade e de reconciliação a partir do Evangelho de Cristo. Situada no centro de uma realidade assinalada pela precariedade, a paróquia pode tornar-se um verdadeiro sinal de esperança. Canalizando as melhores energias do bairro, ela ajuda a população a passar de uma visão fatalista da miséria a um compromisso activo, orientado para a transformação das condições de vida comunitária.

Numerosos membros das comunidades paroquiais estão também activamente empenhados em estruturas e associações que visam melhorar as condições de vida das populações. Enquanto exprimo profundo apreço por estas significativas realizações, exorto as comunidades paroquiais a perseverarem com coragem na obra empreendida em favor dos migrantes, a fim de ajudarem a promover no território uma qualidade de vida mais digna do homem e da sua vocação espiritual.

8. Quando se fala dos migrantes, não se pode deixar de ter em conta as situações sociais dos países dos quais eles provêm. Trata-se de nações onde geralmente se vive em condições de grande pobreza, que a dívida externa tende a agravar. Na Carta Apostólica Tertio millennio adveniente, eu recordava que «no espírito do livro do Levítico (cf. 25, 8-12), os cristãos deverão fazer-se voz de todos os pobres do mundo, propondo o Jubileu como um tempo oportuno para pensar, além disso, numa consistente redução, se não mesmo no perdão total da dívida internacional, que pesa sobre o destino de muitas nações» (n. 51). Este é um dos aspectos que ligam mais directamente as migrações ao Jubileu, não só porque de tais países provêm os fluxos migratórios mais intensos, mas sobretudo porque o Jubileu, propondo uma visão dos bens da terra, que condena o seu uso exclusivo (cf. Lv 25, 23), leva o fiel a abrir-se ao pobre e ao estrangeiro.

Outrora, o crescente fosso entre ricos e pobres, tornando impossível a convivência social, exigia periódicas formas de nivelamento para consentir uma retomada ordenada do viver social. Assim, abolindo a hipoteca sobre as pessoas reduzidas à escravidão da dívida, restabelecia-se uma nova forma de igualdade. As prescrições do Jubileu bíblico representam uma das inúmeras formas de solução para o desequilíbrio social, produzido pela espiral perversa que envolve aqueles que são obrigados a endividar-se para sobreviver.

Tal fenómeno, que outrora dizia respeito às relações dos cidadãos de uma mesma Nação, torna-se mais dramático devido à actual globalização da economia e do comércio, que envolve as relações entre os Estados e as Regiões do mundo. A fim de que o desequilíbrio entre povos ricos e populações pobres não se torne irreversível, com trágicas consequências para toda a humanidade, é necessário traduzir o preceito bíblico em formas concretas e eficazes, que permitam oportunas revisões do endividamento dos países pobres em relação às nações ricas.

Formulo votos por que o próximo Jubileu, como de muitas partes é almejado, constitua uma ocasião propícia para encontrar as soluções oportunas e oferecer aos países pobres renovadas condições de dignidade e de desenvolvimento ordenado.

9. «O Jubileu ainda poderá oferecer a oportunidade para meditar sobre outros desafios do momento, tais como, por exemplo, as dificuldades de diálogo entre culturas diversas» (Tertio millennio adveniente, 51).

O cristão é chamado a evangelizar, alcançando os homens lá onde eles vivem, a encontrá-los com simpatia e amor, a assumir os seus problemas, a conhecer e apreciar a sua cultura, e a ajudá-los a superar os preconceitos. Esta forma concreta de proximidade de muitos irmãos necessitados prepará-los-á para o encontro com a luz do Evangelho e, fazendo nascer vínculos de sincera estima e amizade, levá-los-á a formular este pedido: «Queremos ver Jesus» (Jo 12, 21). O diálogo é essencial para uma convivência serena e fecunda.

Diante dos desafios cada vez mais prementes do indiferentismo e da secularização, o Jubileu exige que este diálogo se intensifique. Através dos relacionamentos quotidianos, os fiéis são chamados a manifestar o rosto de uma Igreja aberta a todos, atenta às realidades sociais e a quanto permite à pessoa humana afirmar a própria dignidade. Em particular os cristãos, conscientes do amor do Pai celeste, não deixarão de reavivar a sua atenção em relação aos migrantes, para desenvolverem um diálogo sincero e respeitoso, destinado à construção da «civilização do amor».

Maria Santíssima, «que acompanha a Igreja com amor materno e a protege no caminho rumo à Pátria, até ao dia glorioso do Senhor» (Missal Romano, III Prefácio da Bem-Aventurada Virgem Maria), esteja sempre presente no olhar dos fiéis neste vasto horizonte de compromissos!

Com estes votos, concedo a todos a minha afectuosa Bênção.

Vaticano, 2 de Fevereiro de 1999.

 

PAPA JOÃO PAULO II



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