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DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
 AO SACRO COLÉGIO DURANTE A AUDIÊNCIA
 PARA A APRESENTAÇÃO DAS BOAS-FESTAS

Sala do Consistório
Segunda-feira, 22 de Dezembro de 1980

 

Venerados Membros do Sacro Colégio
Caríssimos Irmãos

1. Encontramo-nos nesta Sala do Consistório, na atmosfera inconfundível da expectativa do Natal de Cristo Senhor, para a apresentação dos bons-votos. Estes bons-votos não são só palavras: exprimem a realidade vivida da communio das nossas almas, assim como das nossas energias mesmo físicas, todas aplicadas ao serviço único da Santa Igreja, todas fundidas no amor único de Cristo, de quem esperamos o nascimento.

Ouvi estas almas vibrarem nas expressões, sempre apropriadas, gentis e fervorosas, que formulou aqui em vosso nome o caro e venerado Cardeal Decano. Senti nelas, além da nobreza da sua alma a todos conhecida, também a pureza dos vossos sentimentos, nesta circunstância única do ano litúrgico, na qual nos dispomos para receber nos nossos braços, como Maria Santíssima em Belém e como Simeão no templo, o Salvador que vem. Tudo isto agradeço ao Cardeal Confalonieri e, juntamente com ele, a todos vós.

2. Preparamo-nos para celebrar — na humana carne do Verbo, do Filho Unigénito do Pai — o nascimento, originado no seio imaculado de Maria Santíssima; é a realização da expectativa dos séculos, que — em todas as alternativas do Antigo Pacto, como nas aspirações mais secretas dos corações humanos também fora da Revelação — dirigiram as suas aspirações para este cume da história da salvação: «Fiz dele um testemunho para os povos, um chefe soberano das nações» (Is. 55, 4). Cristo é o esperado por todos os povos, é a resposta de Deus à humanidade. Depois do longo período das «preparações evangélicas» (Eusébio de Cesareia), eis que vem do seio do Pai. Vem para fazer-se homem como nós, para oferecer a Deus o acto supremo de adoração e de amor, o único a poder reconciliá-l'O com o homem; vem manifestar a condescendência do Pai e as suas «entranhas de misericórdia» para com o homem, como diremos nas Missas do Natal: «Apparuit benignitas et humanitas: ...Manifestaram-se a bondade de Deus, Salvador nosso, e o seu amor pelos homens» (Tit. 3, 4); vem partilhar a história, a vida, o sofrimento, a pobreza e a insegurança do homem para este readquirir a familiaridade com Deus, perdida por meio do pecado; vem elevar o homem até Deus, num mistério de abaixamento e ao mesmo tempo de grandeza, diante do qual a humana inteligência se perde e não pode senão adorar e dar graças; vem até conferir ao homem a grandeza própria de Deus, a Sua vida, comunicar-lhe a Sua natureza (cf. 2 Ped. 1, 4): «Fez-se Filho do homem — escreve São João Crisóstomo —, aquele que é verdadeiro Filho de Deus, para fazer os homens filhos de Deus. Quando o que há de mais excelso se une ao que há de mais humilde, a glória do primeiro não é diminuída enquanto a humildade do outro é exaltada: isto aconteceu em Cristo. Não diminuiu de facto a Sua natureza com o próprio abaixamento, mas levantou-nos a nós, que estávamos sentados na ignomínia e nas trevas, a uma glória inefável» (Homilia sobre João Evangelista, XI, 1; PG 59, 79). E com esta extraordinária elevação do homem, o Filho de Deus encarnado traz ao mundo a paz, a justiça, a liberdade, a verdade e o amor.

3. Não se trata de uma comemoração, mesmo que seja piedosa e encantadora; não se trata da reevocação de um mito. Depois de dois mil anos de cristianismo, e quase no limiar do terceiro milénio da nossa era, a Igreja recorda ao mundo, firme e alegremente, que esta elevação não é só enunciado teórico, mas continua, está a realizar-se e está no meio de nós. A liturgia representa-nos, na realidade misteriosa do rito, o acontecimento que nos preparamos para reviver; e a Igreja prolonga no tempo e na história a obra de Cristo, actualiza-lhe a Encarnação nas diversas contingências históricas do Kairós que ela é chamada a viver, juntamente com os povos de todo o mundo. Imersa nele, a Igreja é o fermento do mundo, participa das esperanças e das penas, das inquietações, das derrotas e das tragédias humanas. Nisto pensava eu diante do fundo terrível das ruínas da Campânia e da Basilicata, entre os restos do cataclismo que pouco antes tinha exterminado tantas vidas humanas e destruído lugares e habitações, enquanto pensava naqueles irmãos e os fixava nos olhos de sofrimento, para mim dirigidos entre as lágrimas, mas com tanta fé.

A Igreja leva Cristo ao meio dos homens: quer comunicar-lhes a vida, aparecida na noite de Natal com o Verbo feito carne; quer proclamar-lhes a esperança do futuro, que já alvorece no século presente; quer dilatar, mesmo entre os sofrimentos do mundo, aquela paz que foi anunciada pelos anjos em Belém e aquele amor de beneplácito, com que Deus nos abraçou dando-nos o Filho: «Gloria in excelsis Deo et in terra pax hominibus bonae voluntatis» (Lc. 2, 14).

É esta a missão que a Igreja desempenha ad extra, nos cerrados contactos que mantém com os homens que são irmãos.

Na sua primeira grande encíclica Ecclesiam Suam, o meu Predecessor Paulo VI, de venerável memória, pôs em relevo a missão essencial da Igreja, falando «das relações que hoje a Igreja deve estabelecer com o mundo que a circunda e em que ela vive e trabalha; parte deste mundo, como todos sabem, recebeu profundamente o influxo do cristianismo e absorveu-o intimamente, sem muitas vezes ter consciência de quanto é devedora das suas melhores coisas ao mesmo cristianismo, mas depois foi-se distinguindo e apartando, nestes últimos séculos, da cepa cristã da sua civilização; e outra parte, e a maior deste mundo, dilata-se até aos ilimitados horizontes dos povos novos, como se diz; mas tudo junto é um mundo que, não com uma mas cem formas de possíveis contactos, ele oferece à Igreja, abertos e fáceis alguns, delicados e complicados outros, hostis e refractários ao colóquio amigável infelizmente hoje muitíssimos (6.VIII.1694: A. A. S. 56, 1964, pp. 612 s.).

Este contacto da Igreja com o mundo forma agora o objecto desta minha familiar conversa convosco, deixando para Junho próximo, como é minha habitual intenção, considerar a vida ad intra da Igreja mesma. É o intento que me está particularmente a peito, cada ano: não para catalogação de datas e factos, mas antes para descobrir, nos problemas concretos e por vezes dramáticos da humanidade, o papel que a Igreja é chamada a desempenhar no meio desta, com serenidade e franqueza, com fortaleza e alegria, precisamente no espírito do Natal, que foi o primeiro acontecimento fundamental, a que sempre é preciso reportarmo-nos, do diálogo de Deus com o homem.

4. «A situação do mundo contemporâneo manifesta não só transformações tais que fazem esperar num futuro melhor do homem na terra, mas revela também múltiplas ameaças, que ultrapassam muito as conhecidas até agora. Sem se deter ao denunciar tais ameaças em diversas circunstâncias (como nas intervenções na ONU, na UNESCO, na FAO, e noutros lugares), a Igreja deve examiná-las ao mesmo tempo à luz da verdade recebida de Deus» (Carta Enc. Dives in misericordia, 2).

A Igreja não está separada do mundo. Basta pensar na obra que as igrejas locais realizam em todas as latitudes, seja embora em tão diferenciadas condições históricas, sócio-políticas, económicas e culturais. Em cada país encontra a Igreja um rosto diverso da humanidade, na unidade fundamental do género humano. E aqui desejo exprimir o meu apreço, o meu louvor e as minhas palavras de ânimo aos Episcopados das várias nações, que são, no contexto dos seus ambientes geográficos e políticos, a força de coesão e o incansável estímulo de todas as formas de vida católica, mediante as quais a Igreja se anuncia publicamente como o «estandarte elevado entre as nações» (Is. 11, 12), o sinal da Aliança eterna entre Deus e a humanidade.

E aqui não posso, antes de mais, deixar de recordar os Episcopados com que me encontrei este ano durante as suas visitas ad limina; trouxeram-me a imagem viva e concreta dos seus países: Bispos da Nicarágua, do Japão, da Malásia, de Singapura e Brunei, da Indonésia, do Vietname e do Brasil; Bispos indianos de rito malabar e malancar, Bispos caldeus e os de rito grego melquita; Bispos da Birmânia, da Coreia, da Formosa, da Bolívia e da Tailândia. Mediante esses irmãos no Episcopado, entrei verdadeiramente em contacto com os vários povos do mundo, e pude fazer minha a esperança dos Pastores, que anunciam a Cristo às vezes em situações delicadas, na plena identificação com o mistério da Cruz.

Mas também todos os outros contactos, que se dão no decurso do ano — desde as grandes viagens até aos encontros com as peregrinações de todas as proveniências, até às relações familiares, de homem a homem, com os particulares, com as paróquias, com as instituições de carácter civil, religioso e cultural a todos os níveis — oferecem-me, naquela quotidiana solicitude por todas as Igrejas (cf. 2 Cor. 11, 28), a possibilidade, pode dizer-se, de tomar o pulso ao mundo, com todos os seus problemas. Toda a realidade do homem, toda a situação diversificada e complexa da sociedade pluralista, mesmo nações inteiras, tudo fica assim presente aos olhos do Papa, que deseja ser — na consciência sim das suas limitadas forças, mas na vontade humílima e firme de corresponder aos desígnios de Deus —, não só o centro da unidade da Igreja, mas também o ponto de referência para a ansiedade universal de fraternidade e cooperação internacional entre os povos, e deseja dar constante atestado de uma vontade firme de ir ao encontro do mundo.

Esta relação com o mundo abraça portanto a Igreja inteira, e inclui por isso também problemas vitais como o do ecumenismo — que considerei expressamente no passado mês de Junho — porque, de tal modo, também os nossos irmãos, não ainda plenamente a nós unidos, se sentem convidados a participar nestes contactos com que a Santa Sé procura ir até ao mundo, para se encontrar e colaborar com ele.

5. E vem ao meu encontro, neste momento, o rosto de cada uma das nações visitadas nas viagens pastorais, que Deus me concedeu realizar este ano, correspondendo aos instantes convites quer dos Episcopados quer das Autoridades responsáveis: seis países de África — Zaire, Congo-Brazaville, Quénia, Gana, Alto Volta e Costa do Marfim —, o imenso Brasil, e, na Europa, Paris e a França, a Alemanha, e várias cidades da Itália; cada uma com a sua história, a sua civilização, a sua cultura e os seus problemas mesmo graves. Do significado eclesial destas viagens, da possibilidade que oferecem de me encontrar até com os irmãos de outras Igrejas, com os seguidores de outras religiões e também com os não-crentes, já falei em Junho passado (Insegnamenti, III, 1, pp. 1886-1889). Nesta altura sinto como urgente fazer sobretudo notar que os contactos a alto nível, que se realizam naquelas ocasiões, são outros tantos pontos firmes que a Igreja coloca no seu caminho no meio dos homens, aproveitando a possibilidade que lhe é oferecida de tratar com os responsáveis pela sorte dos povos. Disse numa entrevista a um semanário em Língua da Polónia, no meu regresso do Brasil, que «como muitas vezes sublinhei, também durante os encontros com as autoridades, é do interesse daqueles que exercem o poder, que a sociedade seja justa, para que, afastando-se do totalitarismo e realizando uma autêntica democracia, esta sociedade se torne cada vez mais justa, como consequência de razoáveis e providenciais formas sociais. E, fazendo assim, podem-se evitar revoltas, violências e derramamentos de sangue que tantos sofrimentos humanos custam» (em Tygodnik Powszechny; cf. L'Osservatore Romano, 2. VIII.1980).

Esta possibilidade, verdadeiramente extraordinária, que se oferece ao Papa — e se prolonga nos encontros com as altíssimas Personalidades e Chefes de Estado que vêm, em visita oficial, ao Vaticano — é aspecto , que não se pode esquecer, da missão da Igreja e é forma bastante eficaz daquela colaboração que se deseja oferecer às autoridades responsáveis para a construção de um mundo mais ordenado e mais justo. No Quénia falando ao Corpo Diplomático acreditado junto daquela nação, recordei precisamente que «o Estado deve rejeitar todas as coisas que não sejam dignas da liberdade e dos direitos humanos do seu povo, banindo todos os elementos, como o abuso da autoridade, a corrupção, a prepotência sobre os fracos, o negar ao povo o seu direito de participar na vida política e nas decisões, a tirania e o uso da violência e do terrorismo. Aqui de novo — prossegui — não hesito em referir-me à verdade sobre o homem. Sem aceitação da verdade sobre o homem, da sua dignidade e do seu destino eterno, não pode existir entre as nações aquela confiança fundamental que é um dos elementos basilares de toda a empresa humana. E também a função pública não pode ser vista como aquilo que verdadeiramente é: serviço ao povo, que encontra assua única justificação na solicitude pelo bem de todos» (6.V.1980: Insegnamenti, III, I, p. 1191).

Deste modo a Igreja está presente ao serviço do homem: e sobretudo ao serviço dos pobres. «A igreja não seria fiel ao Evangelho se não estivesse perto dos pobres e não defendesse os direitos deles», disse eu na citada entrevista. Ela contribui para a elevação das classes menos favorecidas, que são, nas várias nações, camadas tristíssimas em que o homem-irmão se encontra em condições sub-humanas; e contribui, além disso, para a construção da sociedade de hoje, que vive, por vezes em formas inconscientes, da grande tradição herdada do Evangelho e que a ela deve novamente fazer apelo se quer salvaguardar a própria identidade e o próprio papel: que é o papel de vida, de animação e de respeito recíproco, proclamação de valores afirmados mas nunca conculcados ou rejeitados. «A Igreja — como disse em São Salvador da Bahia — indica o modo de construir a sociedade em função do homem. A sua tarefa é inserir, em todos os campos da actividade humana, o fermento do Evangelho. E em Cristo que a Igreja é 'experimentada em humanidade'» (6. VII). Seja abençoado quem colabora em tal empresa, especialmente os missionários que têm sempre o primeiro lugar no meu coração.

6. Portanto, nas várias viagens — que, com a ajuda de Deus e como anunciei, recomeçarão em breve com extensão mundial, tocando outros povos de diversa e antiga civilização —, a Igreja, por meio do seu Chefe visível, penetra concretamente nas situações próprias das várias nações, respondendo assim ao desejo vivíssimo que nasce no seio dessas mesmas nações.

Na África falei às várias etnias e populações africanas, dos problemas que urgem para a consciência delas, a nível de pessoas particulares e de colectividades: no quadro das características próprias do Catolicismo, que por definição é «universal», foi animada a possível utilização dos elementos próprios daquelas culturas particulares; foi expressa a estima por aqueles valores especiais que a África tem para oferecer ao mundo; foi afirmada a necessidade de salvaguardar o património espiritual, a riqueza extraordinária de sensibilidade para com as realidades religiosas, de tutela das radicadas tradições familiares com todo o seu calor e a sua identidade africana; foi lembrado uma vez mais o drama das zonas provadas pela seca, pela fome e pelo analfabetismo, que reduz as populações e lhes derruba a continuidade, como bradei, com um nó na garganta, no seu apelo pelo Sahel.

No Brasil a Igreja está em contacto com uma particular situação social, que espera atenção vigilante e solidez de medidas por parte dos responsáveis: não posso esquecer os encontros com os favelados do Rio de Janeiro, com os operários de São Paulo, com os camponeses do Recife e com as gentes da Amazónia. Foi ocasião única para proclamar uma vez mais, não só àquelas populações mas diante do mundo inteiro, que «a Igreja, quando proclama o Evangelho, sem aliás abandonar a sua tarefa específica de evangelização, procura obter que todos os apectos da vida social, em que se manifesta a injustiça, sofram transformação a caminho da justiça» (3.VII, em São Paulo).

Na França e na Alemanha foram os encontros da Igreja com nações de antiquíssima civilização europeia, com todas as animadoras riquezas do seu património cultural e artístico, com os estímulos positivos da sua civilização que tanto contribui para o desenvolvimento intelectual e espiritual da humanidade, mas também com modelos de comportamento que por vezes se deixaram dominar pelo permissivismo moral e pela tentação da riqueza. Os vários aspectos daquelas sociedades, nas suas componentes essenciais, foram considerados nos inesquecíveis encontros realizados durante aquelas visitas. Eram um «tu cá tu lá» do Papa com os expoentes da grande civilização europeia.

Mas ocasião única para chamara velha Europa à genuína natureza da sua matriz requintadamente espiritual ofereceram as celebrações do 15° centenário do nascimento de São Bento, que permitiram dirigir-me aos povos que formam este nosso continente, magnífico mas também contraditório ao emaranharem-se as suas opostas tendências, para que seja facilitado o processo imanente de unificação. Na minha mensagem ao Abade de Montecassino (21.III), na homilia e nos discursos pronunciados em Núrsia (23.III), na Carta Apostólica «Sanctorum Altrix» a todas as comunidades religiosas beneditinas (II .VII), na peregrinação a Montecassino (20.IX), e durante a inesquecível e estupendamente significativa a Subiaco, foi-me oferecida a feliz oportunidade para indicarem São Bento, o pioneiro de uma nova civilização, a que devia surgir das ruínas do mundo antigo para infundir nova vida aos povos que se debruçavam na ribalta da história, ao lado daqueles povos que tinham passado pelo drama da decadência, indicando a uns e outros um programa ao mesmo tempo simples e universal de renovamento e de transformação: «deste modo—assim pude dizer em Núrsia—São Bento tornou-se o patrono da Europa no decurso dos séculos: muito antes de ser proclamado pelo Papa Paulo VI. Ele é Patrono da Europa nesta nossa época. É-o não só em consideração dos seus méritos particulares para com este continente, para com a sua história e a sua civilização. É-o, além disso, em consideração da nova actualidade da sua figura relativamente à Europa contemporânea... Tem-se agora a impressão de uma prevalência da economia sobre a moral, de uma prevalência da temporalidade sobre a espiritualidade... Não se pode viver para o futuro sem intuir que o sentido da vida é maior que a temporalidade, está acima dela. Se as sociedades e os homens do nosso Continente perderem o interesse por este sentido, devem reencontrá-lo... segundo a medida de Bento» (Insegnamenti, III, I, pp. 686 s.).

Pedimos que a Europa consiga ter a sabedoria e a clarividência de redescobrir, nesta recta jerarquia dos valores, a única medida válida para favorecer o próprio progresso na justiça, na verdade e na paz. Encontrara a Igreja sempre disponível neste serviço do homem. Assim a encontrarão sempre disponível todos os povos do mundo.

7. Deste modo a Igreja tem a consciência de construir a paz. Permanecer fiel à causa da paz, é dever primário da Igreja, que está a preparar-se para ouvir de novo e observará sempre fielmente a primeira mensagem de paz, a que ressoou em Belém sobre a manjedoura do nascido Filho de Deus. Isto supõe trabalho constante, nunca porém contente nem sequer com resultados lisonjeiros, porque se apresentam problemas sempre novos para resolver; o que supõe vigilância incansável, a fim de prevenir os sintomas da inquietação, que pouco a pouco se vão apresentando, e de indicar com clareza e constância os caminhos da paz, que tem de ser sempre construída de novo, como aliás acontece com todos os bens mais preciosos confiados ao homem, pois requerem esforço constante de conquista e melhoramento.

A esta luz, além das viagens realizadas e dos encontros com os Chefes de Estado, apresenta-se densa rede de contactos a vário nível, eclesial, civil e diplomático, que a Santa Sé mantém com iniciativas várias e diferenciadas. Apraz-me aqui recordar o conspícuo número dos Embaixadores — entre os quais figuram, pela primeira vez na história, os da República Popular do Congo, da Grécia e do Mali — que também este ano tive o gosto de receber para apresentação das Cartas Credenciais: «A composição do Corpo Diplomático permite compreender melhor, de modo justo, o problema importante da presença da Igreja no mundo contemporâneo», disse no princípio do ano àqueles ilustres representantes da convivência internacional (Insegnamenti, III, I p. 136); mas consente também colaborar em concórdia com a grande causa da paz no mundo, dentro do respeito dos vários «sistemas políticos e de uma das responsabilidades temporais» (cf. ib).

Estamos às portas do Dia da Paz de 1981, que este ano tem como mote, como sabeis: «Para servir a Paz, respeita a liberdade». O gesto profético de Paulo VI, ao instituir a celebração dele na aurora de cada novo ano, demonstrou-se de eficácia única para animar e estimular o mundo a pensamentos e a obras de paz. A minha mensagem está agora nas vossas mãos. Mas, durante todo o ano, inumeráveis são os documentos, as Audiências e os contactos privados, dirigidos à salvaguarda do bem da paz, a que se dirigem as mais profundas aspirações humanas: recordo os dois encontros, de Fevereiro e de Novembro, com o organismo da Cúria que alimenta idealmente a acção da Igreja em favor da paz, quer dizer a Pontifícia Comissão «Iustitia et Pax», o prémio João XXIII pela paz, conferido a 9 de Junho aos catequistas africanos, em Kumasi; a mensagem à IIª Sessão Geral das Nações Unidas, em Agosto, e a destinada a preparar a reunião de Madrid para a segurança e a cooperação europeia, em Novembro; e o augúrio de uma crescente paz entre os povos, expresso em Munique da Baviera na altura de me despedir da Alemanha. Assim os encontros, a nível pastoral, com perseguições de vários países do mundo, e até mesmo de continentes inteiros, como a realizada pelos Africanos de Roma, em Fevereiro; as cartas enviadas, em várias circunstâncias aos Bispos da Nicarágua (26.VI), de Salvador (20.X) e da Guatemala (1 .XI), por causa das particulares condições desses países tão provados; as enviadas aos fiéis do México (28.I), do Brasil (21.II), da Hungria (6.IV), dos Estados Unidos da América (2.VI); as Audiências a Deputados brasileiros (20.II), a personalidades políticas da Nicarágua (3.III), ao encontro sobre a cooperação entre a Europa e a América Latina (20.VI), aos Presidentes das Câmaras das cidades mais populosas do mundo (4.IX), a ilustres visitantes suecos (30.X), às Delegações da Argentina e do Chile para a mediação, felizmente posta em marcha nas passadas semanas, sobre a zona austral. E tenho muito a peito recordar o apelo que lancei aos homens da ciência, encontrados na Sede da UNESCO e, por meio deles aos «de todos os países e de todos os continentes» para que sejam empregados todos os esforços «para preservar a família da horrível perspectiva da guerra nuclear... Sim! — acrescentava — a paz do mundo depende do primado do Espírito! Sim! o futuro pacífico da humanidade depende do amor» (Insegnamenti, III, 1, pp. 1654 s.).

São, estes que citei, todos os passos, dados juntamente com os homens de boa vontade, pelo caminho da paz para ajudar a consolidação dela, para levar a que se aprecie cada vez mais o valor e se lhe preparem os frutos, em benefício do mundo inteiro.

8. Mas neste olhar de conjunto lançado à obra realizada em favor da paz no mundo, não faltam infelizmente, como cada ano, sombras sinistras e funestas, que trazem apreensão ao nosso coração: coração de homens, coração de crentes em Cristo.

Não há no mundo, subterrânea como a veia avermelhada e destruidora de um vulcão, uma constante ameaça à paz? Não há povos que sofrem e morrem pelas terríveis rivalidades que deflagram entre nação e nação, às vezes entre partes opostas no interior dos povos mesmos? Como não recordar o conflito entre o Iraque e o Irão? E a situação afegã? As persistentes tensões no Líbano, dilectíssima nação sempre a mim presente, como quis sublinhar várias vezes, este ano, quer escrevendo ao Patriarca Maronita, quer lançando um apelo na Audiência Geral de 18 de Junho, quer recebendo expoentes qualificados da Assembleia Nacional (20,X)? Como não pensar na dilecta Irlanda, que vive horas de grave inquietação? Mas agradecemos ao Senhor — precisamente nestes dias, em resposta aos apelos e às orações de várias partes do mundo — parecer que a tensão se atenuou. Como não recordar as graves violências, que ensanguentaram algumas queridíssimas regiões da América Central, e ainda continuam a ceifar vítimas, a mais ilustre das quais foi o saudoso Arcebispo de São Salvador? Pela paz nesse país elevei a minha súplica a Deus, em 2 de Abril passado: mas chora o coração quando chegam notícias de novas violências e novos morticínios.

Não me esqueço do drama ainda vivo — ainda que abafado por outros acontecimentos dolorosos, que infelizmente embotam a opinião pública —relativo aos prófugos e aos refugiados na Tailândia, e nalguns países da África, com imensos problemas humanos e sociais, de justiça e de caridade, de solicitude inadiável, que apresentam interrogações inquietantes à consciência dos povos.

Estou ao lado de todos os homens irmãos, que sofrem neste momento; assim como participo intimamente nas ansiedades, no sofrimentos e nas esperanças da minha dilecta Pátria.

Em particular — segundo a linha da Mensagem enviada por ocasião da já citada Reunião de Madrid sobre a Segurança e a Cooperação na Europa na qual está presente uma delegação da Santa Sé —, renovo o meu apelo a todas as nações do mundo em favor do respeito, leal e construtivo, da liberdade religiosa a que todos têm direito; como recordei na Mensagem enviada aos Chefes de Estado, signatários do Acto final da Helsínquia, «esta liberdade concreta funda-se na natureza mesma do homem, cuja característica é ser livre» (n. 2); e é salvaguardada, tanto como fundamento da dignidade intrínseca da pessoa, quanto como condição de uma ordenada e justa convivência civil, na qual cada cidadão seja respeitado por aquilo que «é», e não lançado para segunda ou terceira categoria pelas ideias que tem a responsabilidade e a coerência de professar mesmo na vida pública. Neste Campo, a Igreja traçou os princípios do seu comportamento na basilar declaração Dignitatis humanae do Concílio Vaticano II, e para esta é sempre necessário apelar tratando-se de uma verdadeira e duradoura paz espiritual no interior das nações.

9. Infelizmente, nalgumas nações, como a Espanha, a Itália, a Irlanda e outras, perdura gravíssimo o perigo do terrorismo e da violência, desta verdadeira guerra em actividade contra os homens inermes e as instituições, movida por obscuros centros de poder, que não reconheceram como a ordem, por eles procurada mediante a violência, não pode senão exigir outra violência. «Todos os que se servirem da espada, à espada morrerão» recordou Jesus no momento em que sofria a violência mais atroz (Mt. 26, 52). E uma ordem, que viesse a nascer sobre as ruínas e os morticínios da violência, seria paz de cemitério, segundo a conhecida expressão. Não, não se edifica assim a sociedade nova, que deve servir para elevar o homem. A Igreja não se cansa de recomendar a construção de um mundo mais justo e mais são, mediante a conversão interior e o renovamento radical dos costumes morais. Uma vez ainda — como em Drogheda e em Turim — eu suplico aos homens da violência, apesar de tudo meus irmãos, que desistam do seu caminho de morte; convido os jovens a não se deixarem arrastar pela ideologia perversa da destruição e do ódio, mas colaborarem com todas as forças generosas, existentes nas várias nações, para se construir o mundo «à medida do homem»: só assim se poderá assegurar um futuro verdadeiramente positivo, «no impulso de um activo progresso de que venham a gozar sobretudo os humildes, os marginalizados e os pobres.

Elevo ainda o meu pensamento e a minha oração pelas numerosas desprevenidas vítimas do terrorismo, como fiz com grande dor em Fevereiro passado, depois do trágico fim do caro, bom e inesquecível Professor Bachelet, e como fiz em Agosto pela bárbara carnificina de Bolonha; e renovo o meu convite — já dirigido na Audiência à Junta e ao Conselho Provincial de Roma (6.II), e aos Juristas católicos italianos (6.XII) — para que defendam os valores morais, negados pela violência. Confio este voto, que me brota do fundo do coração, ao Príncipe da paz» (Is.9, 6), Aquele que tomou sobre si a condição da natureza humana para divinizá-la e torná-la participante da grandeza mesma de Deus. A nossa oração comum elevar-se-á mais suplicante nestes dias do Natal para invocar conforto e serenidade para tantos sofrimentos de pessoas, famílias e comunidades. Não nos cansaremos de rezar por isto: nem esqueceremos os reféns que estão ainda privados da liberdade em várias partes do mundo, vítimas da represália política ou de iníqua, cruel e inconcebível especulação pecuniária. Estou ao lado deles com a oração, neste Natal que será para os mesmos tão triste! Por todos rezo ao Senhor com as lágrimas nos olhos, pedindo, aos responsáveis que tenham compaixão: em nome de Deus, em nome do homem.

10. A Igreja não está só inclinada sobre os problemas que dizem respeito aos Continentes e aos Povos; dirige-se ao homem em particular, que traz em si impressa a imagem criadora de Deus e é remido pelo Sacrifício de Cristo. Para a Igreja não existe massa amorfa, ou colectividade sem nome: ela sabe que toda a realidade, social e política, é formada por homens particulares, cada um com os problemas inerentes à própria identidade no trabalho, na profissão e na vida familiar e social, se bem que na diversidade das proveniências geográficas ou das posições ideológicas. Para este homem particular tem a Igreja a sua palavra para dizer. A este homem vai o Papa ao encontro, com simplicidade e cordialidade, com plena «simpatia», isto é procurando participar nas suas concretas situações de vida, onde quer que elas se encontrem e se desenvolvam.

Primeiro que tudo, o homem que trabalha: estão impressos no meu coração os encontros, aqui em Roma e durante as viagens, com os extractores do mármore, com os mineiros, com os trabalhadores da indústria e os da terra, com os imigrados para outras nações e os vindos dos vários países: todos fazem brotar da matéria os meios de subsistência para a sociedade inteira, tornando-se assim colaboradores de Deus que precisa do homem para continuar a mostrar a riqueza imanente da Sua criação. Saibam os trabalhadores de todo o mundo que a Igreja está perto deles, os estima e os ama por este contributo insubstituível, ao qual somos todos devedores; é contributo dado com a fadiga de uma vida inteira, e portanto incomparavelmente mais alto e mais sagrado do que a paga ainda mais justa dessa fadiga; saibam que o seu trabalho, como disse recentemente, «ajuda o homem a ser mais homem, amadurece-lhe a personalidade, desenvolve-lhe e eleva-lhe as capacidades, abrindo-o assim ao serviço, à generosidade e ao esforço pelos outros, numa palavra, ao amor» (ao Movimento dos Trabalhadores Cristãos, 6.XII).

O amor! é a grande realidade que deve mover a sociedade, hoje como ontem, se não quer estiolar-se totalmente numa contraposição dialéctica de desfruto e rebelião, numa pura e simples relação de dar e ter, no egoísmo de mónadas que perdem o viço sem se encontrarem nunca senão na desconfiança e no desprezo. Só no amor está o segredo da sobrevivência.

11. Há depois o homem que põe à disposição os seus recursos interiores para a elevação, mesmo qualitativa, dos próprios irmãos: é o grande ambiente da cultura, na sua variada lapidação, que no momento presente adquire proporções extraordinárias em profundidade e extensão, para as especializações que se estão a realizar em todos os sectores da vida intelectual. Para este mundo olha a Igreja com imensa confiança, e a isto dedicou este ano atenções particulares, depois do compromisso solenemente tomado durante a reunião do Sacro Colégio, em Novembro do ano passado, e por ocasião da memorável assembleia da Pontifícia Academia das Ciências, naqueles mesmos dias.

Desejaria citar uma a uma as audiências com homens de estudo e de cultura, que se foram pouco a pouco revezando nesta casa no decurso do ano que está para terminar, trazendo o eco e o fervor dos seus estudos em todos os sectores do conhecimento: historiadores, economistas, filósofos, cientistas, juristas, latinistas e cultores da música. Mas o tempo não o permite. Todavia, três ocasiões fixam a minha atenção de modo particular: a visita à Organização das Nações Unidas para a Educação, a Ciência e a Cultura, em Paris, a 2 de Junho; o encontro com os homens de cultura no Rio de Janeiro, no 1.° de Julho; e os encontros seja com cientistas e estudantes, seja com artistas e jornalistas, respectivamente em Colónia e em Munique, a 15 e a 19 de Novembro, na viagem à Alemanha dentro do enquadramento das comemorações centenárias daquele grande homem de cultura e piedade que foi Santo Alberto Magno. Os homens de cultura são os guardas do património mais autêntico da humanidade e do futuro das nações: nas suas mãos está a civilização, mas deles depende também, não o queira Deus!, a barbárie de amanhã: «A verdadeira cultura é humanização, ao passo que a não-cultura e as falsas culturas são desumanizantes. Para isto, na escolha da cultura o homem joga o seu destino», disse eu no Rio de Janeiro. Por tal motivo, a Igreja tanto espera dos homens da cultura, dos quais depende verdadeiramente o futuro da humanidade nas suas raízes mais profundas. E também verdade, como recordei em Munique, que «nos últimos séculos, sobretudo a partir de 1800, o laço entre a Igreja e a cultura, e portanto entre a Igreja e a arte, afrouxou»: as razões são múltiplas, por uma atitude recíproca de desconfiança. Mas tal estado de coisas já não tem razão de existir: «O Concílio Vaticano II lançou as bases de uma relação substancialmente nova entre a Igreja e o mundo, entre a Igreja e a cultura moderna» (ib.) e chegou, por isso, o momento de proclamar de novo, como procurei humildemente fazer diante da prestigiosa reunião da UNESCO, que «o laço fundamental do Evangelho, isto é da mensagem de Cristo e da Igreja, com o homem na sua humanidade,... é efectivamente criador de cultura no seu fundamento mesmo. Para criar a cultura é necessário considerar, até às últimas consequências e integralmente, o homem como valor particular e autónomo, como sujeito portador da transcendência da pessoa. É necessário afirmar o homem por si mesmo! Bem mais, é necessário amar o homem porque é homem, é necessário reivindicar o amor pelo homem por causa da dignidade particular que ele possui». (Insegnamenti, I, p. 1643). Só a Igreja, que integralmente guarda o Evangelho de Cristo, pode garantir o homem contra todo o engano de outro homem: e na cooperação reencontrada entre Igreja e cultura, nas respectivas e autónomas esferas de acção, pode-se descobrir aquela harmonia superior, que é garantia de paz e, como tal, tão desejada é pelos homens, preocupados com a sorte da humanidade.

12. O esforço que a Igreja realiza lançando pontes com as várias expressões da vida social, em que operam os indivíduos em particular com a inexaurível carga dos seus recursos pessoais, não tem outra finalidade que não seja a edificação de uma vida serena, construtiva, pacífica e alegre: sociedade à medida do homem.

Por isto, procurei com todo o esforço travar relações com todos os expoentes e os artífices desta sociedade: com os educadores da juventude na escola; com os homens dos «mass-media», obrigados também eles, pela sua delicadíssima função, a uma deontologia precisa e a um claro código moral; com os homens dos serviços sociais mais cheios de risco (penso nos Bombeiros, com quem me encontro cada ano); com os militares e os seus oficiais de várias ordens e especializações; com os ferroviários; com os atletas, empenhados em várias actividades desportivas. Seguindo as pegadas dos meus predecessores, especialmente de Pio XII, cujo incansável ensinamento, na fase mais delicada da reconstrução mundial, não poupou nenhuma categoria social, a todos — cada um segundo as próprias possibilidades, a própria preparação e responsabilidade recordei a obrigação de contribuírem para fazer que o mundo em que vivemos, manifeste, cada vez mais plenamente, o rasto da alegria primitiva que sentiu Deus criador quando, ao lançar o olhar para a grandeza da criação, se alegrou no íntimo seio da sua vida trinitária: «E Deus viu que era coisa boa» (cf. Gén. 1, 31). Saiba também o homem de hoje que «a alegria do Senhor é a nossa força» (cf. Ne. 8, 1).

13. O homem, para além de toda a mais alta actividade intelectual ou social, encontra o seu desenvolvimento pleno, a sua realização integral e a sua riqueza insubstituível na família. Nela verdadeiramente, mais que em qualquer outro campo da sua vida, joga-se o destino do homem. Por isso, a Igreja continua a dedicar as atenções mais intensas e cuidadosas à magnífica realidade da família. Está ainda no nosso coração de Pastor, vivíssima, a recordação das jornadas da V Assembleia Geral do Sínodo dos Bispos, dedicadas ao grande problema, vital não só para a Igreja mas também para a humanidade inteira. Os problemas enfrentados pelos Bispos, com lúcido realismo e fraternal solicitude, eram muitos, e deles se tornaram intérpretes os vários Episcopados trazendo o elenco das situações próprias das várias partes do mundo. O Sínodo, ao tratar estes problemas, «moveu-se segundo duas directrizes, como à volta de pólos — assim o resumi na conclusão da Assembleia —, isto é, segundo a fidelidade ao plano de Deus quanto à Família, e segundo a prática pastoral caracterizada por um amor misericordioso e pelo respeito devido aos homens, considerados na sua plenitude naquilo que respeita ao seu «ser» e ao seu «viver» (25.X). Isto é, afirmaram-se os princípios da ética matrimonial, sobre os quais se apoia a instituição familiar, segundo os pontos firmes traçados por Paulo VI na sua Encíclica Humanae Vitae, e ao mesmo tempo foram tidas presentes, com coração de pastores e de pais, as dificuldades, as ansiedades e por vezes os dramas de tantas famílias que desejam conservar íntegra a sua fidelidade ao Evangelho e não transgredir as normas eternas da ética natural, além da imprescritível Lei de Deus, inscrita no coração do homem.

A família toca hoje o ponto talvez mais agudo de uma crise sem precedentes, consumada no confluir das várias mentalidades permissivistas e de teorias que, em nome de uma pretendida autonomia do homem, chegam a negar a missão confiada ao homem mesmo por Deus criador, no plano original da comunicação da vida (cf. Gén. 1, 28) Este plano tenho procurado explicá-lo o mais completamente possível no decurso deste ano inteiro, já desde o verão de 1979, precisamente em vista da celebração do Sínodo e no quadro da sua orientação doutrinal. A Lei de Deus não mata mas exalta o homem, e chama-o à extraordinária cooperação com Ele na missão e na alegria da paternidade e da maternidade responsáveis. Diante do desprezo do valor supremo da vida, segundo o qual se chega a justificar a supressão do ser humano no seio materno; diante das degradações praticadas da unidade familiar, garantia única para a formação completa das crianças e dos jovens; diante da desvalorização do amor límpido e puro até ao desenfreado hedonismo e à difusão da pornografia, é necessário proclamar alto a santidade do matrimónio, o valor da família e a intangibilidade da vida humana. Não me cansarei nunca de cumprir esta que julgo missão inadiável, aproveitando as viagens; os encontros; as audiências; as mensagens a pessoas, instituições, associações e consultórios, que se preocupam com o futuro da família e dela fazem objecto de estudo e de acção. Uma vez mais, com as palavras da oração ditada por altura do Sínodo, peço a Deus que «o amor, reforçado pela graça do sacramento do Matrimónio, / se apresente mais forte que toda a fraqueza e toda a crise, / através das quais, por vezes, passam as nossas famílias / ...: por intercessão da Sagrada Família de Nazaré, a Igreja, no meio de todas as nações da terra, / possa cumprir frutuosamente a sua missão / na família e mediante a família».

14. Não posso terminar sem uma alusão, pelo menos, à inexaurível e prometedora carga de vida e de progresso social, que são hoje os jovens para a Igreja e para o mundo. São os primeiros beneficiários da acção plasmadora e co-responsabilizante da família; mas são também as primeiras vítimas das desordens e dos desequilíbrios, que lhe minam hoje a vida. Falei outras vezes deste tema, e baste só a alusão. Ao recordar que, na África e no Brasil, visitei nações verdadeiramente jovens, porque a sua população é constituída, na maior parte, pela juventude, não posso deixar de pensar nestes homens do futuro, que terão na mão a sociedade dos anos Dois Mil. É desmedido potencial humano, que tanto espera de nós, de toda a sociedade: para ele olha Cristo com ilimitado amor, com infinita confiança, fixando cada um nos olhos, como fez com os seus apóstolos, com as crianças e com o jovem rico do Evangelho.

Jovens, digo-vos, Cristo espera-vos de braços abertos; Cristo conta convosco para construir a justiça e a paz, para difundir o amor. Como em Turim, digo ainda hoje: «Deveis voltar à escola de Cristo... para reencontrar o verdadeiro, pleno e profundo significado destas palavras. O necessário suporte para estes valores não está senão na posse de uma fé segura e sincera, de uma fé que abrace Deus e o homem, o homem em Deus... Não há dimensão mais adequada, mais profunda para dar a esta palavra 'homem', a esta palavra 'amor', a esta palavra 'liberdade', a estas palavras 'paz' e 'justiça': outras não há, não há senão Cristo» (Insegnamenti, III, 1, pp. 905 s.).

Sim, caríssimos jovens, que encontrei em todas as minhas viagens — e como esquecer o encontro característico no Parc-des-Princes, de Paris? — jovens que vi em todas as latitudes do mundo, nas populosas cidades e nos campos, nos estádios e nas praças, nas Missas em São Pedro como em institutos particulares como o de Casal del Marmo: sim, universitários, trabalhadores, desportistas; sim, jovens escapados aos tentáculos da droga: não há senão Cristo, Redentor do homem! Estai convencidos disto e dizei-o bem alto ao redor de vós.

15. Irmãos caríssimos

Recordei o que foi dito nas relações da Igreja com o mundo: mas estou convencido de que todas as actividades, que pude exercer no decurso do ano, foram possíveis precisamente graças ao concurso de tantas forças generosas e silenciosas, que amam sinceramente a Igreja; graças ao auxílio de Cardeais, de Bispos, Sacerdotes, de leigos comprometidos no apostolado, de organismos de várias denominações, que me ofereceram valiosíssimo apoio; e graças a vós, meus primeiros e insubstituíveis colaboradores da Cúria Romana, que sinto tão perto de mim. A todos exprimo a minha viva, sincera e comovida benevolência.

Dispomo-nos a celebrar o Natal. Vimos desenharem-se diante dos olhos os múltiplos campos da vida do homem contemporâneo, com as suas luzes e as suas sombras, com as suas incertezas e as suas esperanças, com os seus perigos e os seus recursos. Sobre todos estes campos do ser e do operar humano, no mundo contemporâneo, está para nascer, uma vez mais, o Salvador. O mundo espera-O, mesmo inconscientemente; o mundo precisa d'Ele, que anuncia a misericórdia do Pai, que é a misericórdia do Pai. Apesar de aparências exteriores, este mundo sofre por dentro: desequilíbrios, discriminações, opressões, calamidades naturais, dificuldades indescritíveis; insatisfações, temores, violências, mortes; e sobretudo, há o pecado, germe desagregador e fonte de infelicidade profunda. Cristo vem salvar o mundo, do pecado, e oferecer-lhe a felicidade última do resgate: Ele — escrevi na Encíclica Dives in misericórdia, que entreguei à meditação da Igreja no princípio deste Advento em preparação para o Natal — «tornando-se a encarnação do amor que se manifesta com particular força a respeito dos que sofrem, dos infelizes ou dos pecadores, torna presente e deste modo revela mais plenamente o Pai, que é Deus 'rico de misericórdia'. Ao mesmo tempo, tornando-se para os homens modelo do amor misericordioso para com os outros, Cristo proclama, com os factos mais ainda que com as palavras, aquele apelo à misericórdia que é uma das componentes essenciais do ethos do Evangelho» (n. 3).

O Natal é o sinal da misericórdia de Deus, do aparecer entre os homens do seu amor libertador. A Igreja não se cansa de repetir o anúncio dele, porque sabe que o mundo precisa desta misericórdia, a qual não avilta mas dá ao homem nova dignidade, elevando-o ao nível de Deus. Este abaixou-se em Cristo para reconduzir o homem à sua grandeza perdida: «Quis quomodo est Deus incommutabilis, fecit omnia per misericordiam, et dignatus est ipse Filius Dei mutabilem carnem suscipere, manens id quod Verbum Dei est, venire et subvenire homìni: como Deus não é mudável, e fez todas as coisas por meio da Sua misericórdia, assim o mesmo Filho de Deus dignou-Se assumir uma carne mudável, permanecendo Verbo de Deus, dignou-se vir socorrer o homem» (S. Augustini, Serm. 6, 5; C. C. L., 41, Sermones de Vetere Testamento, ed. C. Lambot, Turnhout, 1961, p. 61).

Dignatus est venire et subvenire homini: este é o Natal para nós. E isto nos esforçamos por realizar no mundo, como membros daquela Igreja que se reconhece nascida, juntamente com Cristo nascido, para ajudar o homem a salvar-se: subvenire homini. Esta é a nossa preocupação, caríssimos Irmãos, o nosso empenho e o nosso esforço; este o nosso único desejo, e o prémio para que tendemos com todas as forças, enquanto o Senhor nos dá respiração e força, a mim e a todos.

Com a minha mais afectuosa Bênção Apostólica.

 

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