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DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
 AOS PADRES PROVINCIAIS DA COMPANHIA DE JESUS

Sala do Consistório
Terça-feira, 27 de Fevereiro de 1982

 

1. Tenho particular gosto em vos acolher hoje, caríssimos Irmãos em Cristo, neste especial encontro! Saúdo do coração o meu Delegado para a Companhia de Jesus, Padre Paulo Dezza, e o seu Coadjutor, Padre Pittau, e especialmente o venerado Prepósito-Geral, Padre Pedro Arrupe, e todos vós, Assistentes e Conselheiros da Cúria Generalícia e 86 Padres Provinciais, representantes diante dos meus olhos dos 26.000 Jesuítas, que, espalhados por todas as partes do mundo, estão empenhados em "servir o único Senhor e a Igreja, Sua Esposa, sob o Romano Pontífice, Vigário de Cristo na terra".

A estes sentimentos de sincera alegria pela vossa presença junta-se o devido sentimento de reconhecimento e gratidão, que — seguindo os meus Predecessores — desejo dirigir a toda a Companhia de Jesus e a cada um dos seus Membros, pelo contributo histórico de apostolado, de serviço, e de fidelidade a Cristo, à Igreja e ao Papa, dado de há séculos com uma generosidade incansável e uma dedicação exemplar em todos os campos do apostolado, nos ministérios e nas missões. É reconhecimento que, hoje, em nome da Igreja toda, eu dirijo a vós, dignos herdeiros de tais Religiosos, que têm feito, de há quatro séculos e meio, da "maior glória de Deus" o seu mote e o seu ideal.

Esta gratidão e este reconhecimento adquirem especial significado nas actuais circunstâncias, que se manifestam e são objectivamente delicadas para o governo da vossa benemérita Ordem. É sabido que, em seguida à enfermidade que atacou o caríssimo Padre Arrupe, julguei oportuno nomear um meu Delegado pessoal, e um seu Coadjutor, para o governo da Ordem e para a preparação da Congregação Geral. A situação, indubiamente singular e excepcional, sugeriu uma intervenção, uma "prova", que — e digo-o com intensa comoção — foram acolhidas pelos Membros da Ordem com espírito autenticamente inaciano.

É exemplar e comovedora foi sobretudo, em tal circunstância delicada, a atitude do Reverendíssimo Prepósito-Geral, que me edificou a mim e a vós com a sua plena disponibilidade diante das superioras indicações, com o seu generoso "fiat" à vontade exigente de Deus, que se manifestou na improvisa e inesperada doença, e nas decisões da Santa Sé. Tal atitude, evangelicamente inspirada, foi uma vez mais a confirmação daquela total e filial obediência, que todo o Jesuíta deve mostrar para com o Vigário de Cristo.

Ao Padre Arrupe, aqui presente com o silêncio eloquente da sua enfermidade, oferecida a Deus pelo bem da Companhia, desejo dizer, nesta ocasião particularmente solene para a vida e para a história da vossa Ordem, o "obrigado" do Papa e da Igreja!

Um sentimento de reconhecimento devo publicamente manifestar também ao meu Delegado pessoal, o Padre Paulo Dezza, que em espírito de perfeita obediência inaciana aceitou um peso e um encargo, particularmente difíceis, pesados e delicados. Mas a sua profunda espiritualidade, a sua vasta preparação cultural, a sua consumada experiência religiosa são e serão para a Companhia uma garantia de fidelidade na continuidade. Análogo sentimento exprimo para o seu Coadjutor, o Padre José Pittau, que trabalhou por tantos anos no Japão, naquele nobre País em que o Padre Arrupe difundira, em particular depois da terrível segunda guerra mundial, os tesouros da sua apostólica intrepidez e generosidade sacerdotal.

2. Viva satisfação tenho o dever de manifestar pela análoga atitude de obediência e disponibilidade confiante, de que deram concreta demonstração neste período os Assistentes, os Conselheiros da Cúria Generalícia como também os Jesuítas de todo o mundo. A opinião pública, que talvez esperasse dos Jesuítas um gesto ditado só pela lógica humana, recebeu, com admiração, uma resposta, ditada pelo contrário pelo espírito do Evangelho; pelo espírito profundamente "religioso", pelo espírito das boas, autênticas, tradições inacianas.

Tal atitude de obediência e disponibilidade foi a resposta consciente, por parte da Companhia de Jesus, a um gesto de amor, realizado a seu respeito pela Santa Sé e pelo Vigário de Cristo.

Sim, caríssimos Irmãos! A decisão, que foi tomada pela Santa Sé, tem a sua profunda motivação e a sua verdadeira fonte no particular amor, que ela alimentou e alimenta pela vossa grande Ordem, benemérita no passado e protagonista do presente e do futuro da história da Igreja!

Por meu lado, depois, tal amor é ditado por uma especial relação da Companhia de Jesus com a minha pessoa e com o meu ministério universal, mas brota também da minha experiência sacerdotal e episcopal na arquidiocese de Cracóvia, como também da esperança e das expectativas no que diz respeito à realização dos encargos pós-conciliares e actuais da Igreja.

Em tal clima de sereno acolhimento da vontade de Deus, vós, nestes dias, estais a reflectir, na meditação e na oração, sobre o modo melhor de responder às expectativas do Papa e do Povo de Deus, num período de polarizações e contradições, que distinguem a sociedade contemporânea. Objecto das vossas reflexões, animadas pelo "discernimento" inaciano, são os problemas fundamentais da identidade e da função eclesial da Companhia: o "sentire cum Ecclesia"; o apostolado; a qualidade da vida religiosa do jesuíta; a formação — que coisa espera a Igreja da Companhia de Jesus.

3. Olhando, neste nosso encontro, para o vosso grupo qualificado de Filhos de Santo Inácio, oferece-se à minha consideração o aspecto da vossa Ordem e da sua gloriosa história.

É conhecido por todos aqueles que sabem a história da Igreja, como e quanto a Companhia de Jesus, que surgiu no tempo do Concílio de Trento, contribuiu eficazmente para a aplicação das orientações daquele Concílio e para a inclusão, na Igreja mesma, daquela corrente de vitalidade, que ele trouxe.

É porém oportuno reflectir sobre o passado da vossa Ordem para recolher as notas fundamentais deste processo e os aspectos mais ricos e positivos do modo como a Companhia contribuiu para isso: serão como luzes orientadoras, faróis indicadores do que a Companhia de hoje, movida pelo dinamismo típico do carisma do seu Fundador, mas em autêntica fidelidade a ele, pode e deve realizar para favorecer o que o Espírito de Deus despertou na Igreja com o Concílio Vaticano II.

Percorrendo de novo os 4 séculos e meio da sua história, surgem alguns elementos de autêntico valor: são os característicos da vida e da missão daquele Corpo, que por querer de Inácio é a Companhia de Jesus.

A primeira preocupação de Inácio e dos seus companheiros foi a de promover um autêntico renovamento da vida cristã. A situação da sociedade e da Igreja era tal que só a obra de homens de Deus podia ter influxo é oferecer um contributo de vitalidade santificadora.

A exemplo de Jesus, que percorreu "todas as cidades e as aldeias, ensinando nas sinagogas, proclamando a Boa Nova do Reino" (Mt 9, 35), os primeiros companheiros, enviados pela obediência, foram peregrinando pelas várias cidades, difundindo a boa nova e levando um sopro de vida santa; é o início daquelas missões populares, destinadas a servir o povo cristão, a instruí-lo na fé e a levá-lo a uma coerência de vida; missões populares que terão em seguida florescente desenvolvimento e vasto influxo benéfico.

Para uma mais profunda renovação da vida cristã revelaram-se meio particularmente eficaz os exercícios espirituais de Santo Inácio, que assinalaram um vestígio indelével na história da espiritualidade. Nos exercícios formaram-se os primeiros companheiros e os sucessores deles, e com os exercícios tornaram-se uns e outros os guias espirituais de inumeráveis fiéis, ajudaram-nos a descobrir a sua vocação segundo o plano de Deus e a tornar-se autênticos cristãos comprometidos, qualquer que fosse o seu estado de vida.

4. Ao lado da direcção espiritual foi cuidado solícito da Companhia a difusão da verdadeira doutrina católica, entre os doutos e os indoutos, desde as crianças aos mais anciãos. Os dois Santos Jesuítas Doutores da Igreja, São Pedro Canísio e São Roberto Belarmino, foram os autores de dois célebres catecismos para as crianças e foram ambos mestres admirados, o primeiro envolvido nas discussões teológicas do Concílio de Trento, e o segundo defensor da fé a partir das cátedras de Lovaina e de Roma.

Para semelhante intento Santo Inácio, e depois dele a Companhia, desvelaram-se na educação da juventude: fundaram e multiplicaram os colégios nos quais, seguindo o novo sistema pedagógico — a célebre "Ratio studiorum" —, tendiam a dar uma formação geral da pessoa humana, para forjar homens que, eminentes nos estudos e em todas as profissões, fossem ao mesmo tempo eminentes cristãos.

Tudo isto acontecia num tempo, em que o mundo e particularmente a Europa estavam em transformação, melhor numa viragem decisiva no campo literário e científico. Neste processo inseriram-se rigorosamente literatos e cientistas jesuítas, realizando obra de pioneiros "ad maiorem Dei gloriam", isto é, favorecendo aquele desenvolvimento cristão do homem que, quando se realiza, é para a glória de Deus.

5. Olhando depois para um sector de vital importância para a Igreja, a preocupação de Santo Inácio, e atrás dele da Companhia, foi a dos seminários e dos centros superiores de estudo para a formação do clero. A Santo Inácio se deve a fundação do tão benemérito Colégio Romano, transformado na Universidade Gregoriana, e também a fundação do Colégio Germânico, ao qual se seguiram, frequentemente com a colaboração de muitos jesuítas, os outros colégios nacionais em Roma, a fim de prepararem para a Igreja numerosos sacerdotes dotados de sã doutrina e sólida virtude, que se tornaram zelosos apóstolos nas próprias pátrias e não raro mártires da fé.

Em conexão com estes centros de estudo, a Companhia deu validíssimo contributo no campo das ciências sagradas, de particular importância para a Igreja. E a abundante falange dos jesuítas, cultores da teologia, da exegese bíblica, da patrologia, da história eclesiástica, da moral e do direito canónico, e de tantas outras ciências relacionadas com os estudos sagrados.

Mas a visão de Santo Inácio abriu-se para horizontes ainda mais vastos, tanto quanto era vasto o mundo, que, em seguida aos recentes descobrimentos geográficos, tinha tomado mais amplas dimensões. É o anelo de Cristo, que vibrava no coração do Santo, e no coração de todos os que, participando do seu espírito, se ofereceram inteiramente a "Nosso Senhor, rei eterno", cuja "vontade é de conquistar o mundo todo" (Exercícios Espirituais, n. 95).

O grupo dos primeiros companheiros de Inácio era pequeno; no entanto o Santo mandou para o Oriente São Francisco Xavier, o primeiro daquela ininterrupta multidão de missionários jesuítas, que no Oriente e no Ocidente, foram "enviados" a anunciar o Evangelho e, ardorosos de zelo apostólico, estavam prontos a dar a vida para testemunhar a sua fé, como atestam os numerosos Mártires da Companhia. Enquanto o fim primário da missão deles era comunicar a fé e a graça de Cristo, eles esforçaram-se ao mesmo tempo por elevar o nível humano e cultural das populações, no meio das quais trabalhavam, por fomentar uma vida social mais justa e mais em correspondência com os desígnios de Deus, pelo que são ainda agora recordadas na história as famosas Reduções do Paraguai.

A generosidade e o ímpeto destes missionários atraiam novas levas; as cartas de São Francisco Xavier tocavam os corações dos estudantes universitários de Paris. Coisa semelhante fizeram a vida e os escritos de tantos outros conhecidos apóstolos do reino de Cristo, aos quais anda junto um exército anónimo de santos religiosos, que nas longínquas terras de missão sacrificaram a vida na humildade e no escondimento.

Entre os muitos missionários jesuítas desejo nomear um, porque a sua recordação é hoje de particular actualidade: o Padre Mateus Ricci, de quem estamos para celebrar o quarto centenário da sua entrada na China; aquele grande País que tinha sido o sonho de São Francisco Xavier, falecido 30 anos antes na ilha de Sanchão, às portas daquela China que foi e quer voltar a ser campo privilegiado do apostolado da Companhia.

Assim no decurso da sua história, a Companhia de Jesus, em toda a parte do mundo, onde se combatia por Cristo e pela Sua Igreja, esteve presente com os seus filhos melhores, ardentes de zelo, armados de virtude, fornecidos de doutrina e fiéis às directrizes do seu chefe, do Vigário de Cristo, o Romano Pontífice.

Esta é a Companhia de Jesus, que a história põe diante do nosso olhar; a Companhia de Jesus que os inimigos de Cristo perseguiram até lhe conseguirem a supressão, mas que a Igreja fez ressurgir, sentindo a necessidade de filhos tão generosos e devotos, nos quais os Papas confiaram no passado e nos quais o Papa quer confiar também para o futuro.

6. Se falei da Companhia de Jesus no passado, com o fim de recolher os traços característicos da sua vida e missão, foi porque penso na Companhia de hoje e no que dela espera a Igreja para o presente e o futuro.

Quem observa a riqueza do contributo que a vossa Ordem ofereceu à vida da Igreja e do mundo, e chega a pôr em evidência os seus aspectos principais, não pode deixar de ver o que foi para Santo Inácio uma das notas mais características da Ordem por ele fundada, sob o impulso do Espírito Santo.

Na sua história, com efeito, a Companhia de Jesus, sempre se distinguiu mediante as formas múltiplas e variadas do seu ministério apostólico, pela mobilidade e pelo dinamismo que o seu Fundador lhe infundiu e que a tornaram capaz de discernir os sinais dos tempos e, por isso, de estar na vanguarda da renovação desejada pela Igreja.

Em virtude da vocação apostólica e missionária que é a vossa, os membros do escolhido corpo que vós formais por vontade de Santo Inácio e da Igreja, encontram-se segundo as palavras que vos dirigia Paulo VI, "na vanguarda da profunda renovação que a Igreja, sobretudo depois do Concílio Vaticano II, procura levar a termo, neste mundo secularizado. A vossa Companhia é, pode dizer-se, o test da vitalidade da Igreja através dos séculos; é talvez um dos cadinhos mais significativos, em que se encontram as dificuldades, as tentações, os esforços e as iniciativas, a perenidade e os êxitos de toda a Igreja" (Paulo VI, Alocução aos Padres da 32ª Congregação Geral, 3 de Dezembro de 1974).

Pois bem! Como já vos dizia o meu venerado predecessor, a Igreja espera hoje da Companhia que ela contribua eficazmente para a aplicação do Concílio Vaticano II, como, no tempo de Santo Inácio e muito depois, ela empregou todos os esforços para dar a conhecer e fazer reduzir à prática o Concílio de Trento e para ajudar de maneira notável os Pontífices Romanos no exercício do ministério supremo deles.

7. Permiti-me que insista uma vez mais e solenemente sobre a interpretação exacta do recente Concílio. Tratava-se e continua a tratar-se de uma obra de renovamento eclesial, atento ao Espírito Santo. Sobre este ponto capital, os documentos conciliares são de uma clareza que não tem igual (cf. Lumen gentium, nn. 4, 7, 9; cf. Gaudium et spes, n. 21, parág. 5 e n. 43, parág. 6). E esta renovação de fidelidade e de fervor em todos os domínios da missão da Igreja — aperfeiçoada e expressa na audição colegial do Espírito do Pentecostes — deve ser igualmente acolhida e vivida agora segundo o mesmo Espírito, e não segundo critérios pessoais ou teorias psicossociológicas. É para realizar melhor este trabalho no seio do povo de Deus, que os contemplativos e os religiosos que praticam a vida apostólica, foram chamados pelo mesmo Concílio a uma renovação da própria existência evangélica. O decreto Perfectae caritatis (n. 2 e n. 3) exprime com clareza e fervor estes critérios de renovação. Sendo-lhes fiel, já não há lugar para desvios certamente nocivos à vitalidade das comunidades da Igreja inteira. Parece-me que a Companhia de Jesus, cada vez mais impregnada do espírito da verdadeira renovação, será capaz de desempenhar plenamente o seu papel tanto hoje como ontem e sempre: a saber, ajudar o Papa e o Colégio Apostólico a fazer progredir toda a Igreja pelo grande caminho traçado pelo Concílio, e a convencer os que infelizmente são tentados, pelos caminhos seja do progressismo seja do integrismo, a voltarem com humildade e alegria à comunhão sem sombras com os seus Pastores e com os seus irmãos que sofrem com essas atitudes e com que eles andem longe. Este trabalho paciente e delicado é sem dúvida obra de toda a Igreja. Mas, na fidelidade ao vosso Pai Santo Inácio e a todos os seus filhos, deveis hoje arvorar-vos como um só homem para esta missão de unidade na verdade e na caridade.

O quarto voto da Companhia foi precisamente compreendido por Santo Inácio como a expressão viva e vital da consciência de a missão de Cristo se prolongar no tempo e no espaço naqueles que, chamados por Ele a segui-1'O e a partilhar os Seus trabalhos (cf. Exercícios Espirituais, nn. 91-98), fazem próprios os Seus sentimentos e vivem assim a íntima união com Ele e, pelo facto mesmo, com o seu Vigário na terra.

Eis porque Santo Inácio e os seus companheiros, querendo participar na missão de Cristo, que prossegue na Igreja, decidiram colocar-se incondicionalmente à disposição do Vigário de Cristo e ligar-se a ele por "um voto especial", porque esta união com o Sucessor de Pedro, que é o núcleo principal dos membros da Companhia, assegurou sempre a vossa comunhão com Cristo; mais ainda, é "o sinal da vossa comunhão com Cristo, Chefe primeiro e supremo da Companhia que por antonomásia é Sua, de Jesus" (Paulo VI, Alocução aos Padres da 32ª Congregação Geral, 3 de Dezembro de 1974).

8. Por causa desta nota distintiva e característica da vossa Ordem, a Igreja espera portanto em primeiro lugar que vós adapteis as diferentes formas de apostolado tradicional que mantém ainda hoje todo o seu valor, trabalhando para renovar a vida espiritual dos fiéis, a educação da juventude, a formação do clero, dos religiosos e das religiosas, e a actividade missionária; isto inclui catequese, proclamação da Palavra de Deus, difusão da doutrina de Cristo, penetração cristã no domínio da cultura de um mundo que procura estabelecer divisão e oposição entre ciência e fé, e ainda inclui actividade pastoral em favor dos pobres, dos oprimidos e dos marginalizados, exercício do ministério sacerdotal em todas as suas expressões autênticas, sem esquecer os novos meios do apostolado de que dispõe a sociedade moderna, como a imprensa e os meios de comunicação social, aperfeiçoando o uso que a Companhia já deles fez durante a época recente.

Além disso, a Igreja deseja ver a Companhia interessar-se cada vez mais pelas iniciativas que o Concílio Vaticano II particularmente animou:

— o ecumenismo, para reduzir o escândalo da divisão dos cristãos. Eis que há mais de 20 anos, a Igreja criou o Secretariado para a Unidade dos Cristãos: importa que num mundo que se descristianiza, aqueles que crêem em Deus e em Cristo colaborem entre si;

— o aprofundamento das relações com as religiões não cristãs, fomentado pelo Secretariado para os não-cristãos e a apresentação da vida e da doutrina cristã de maneira adaptada às diferentes culturas, a qual tenha em conta a grande sensibilidade dos traços característicos e das riquezas de cada uma;

— os estudos e as iniciativas respeitantes ao fenómeno preocupante do ateísmo, fomentados pelo Secretariado para os não-crentes, recordando-vos do cargo que Paulo VI vos confiou de "resistir vigorosamente e com todas as vossas forças ao ateismo" (Alocução aos Padres da 32ª Congregação Geral, 7 de Maio de 1965).

Há ainda um ponto para o qual desejaria atrair a vossa atenção. Nos nossos dias, sente-se com urgência cada vez maior, na acção evangelizadora da Igreja, a necessidade de promover a justiça. Se se têm em conta as verdadeiras exigências do Evangelho e ao mesmo tempo a influência que exercem as condições sociais sobre a prática da vida cristã, compreende-se facilmente porque considera a Igreja a promoção da justiça como parte integrante da evangelização. Trata-se de um campo importante da acção apostólica. Neste campo nem todos têm a mesma função e, no que respeita aos membros da Companhia, é preciso não esquecer que a necessária preocupação pela justiça deve exercer-se em conformidade com a vossa vocação de religiosos e de sacerdotes. Como disse a 2 de Julho de 1980 no Rio de Janeiro, o serviço sacerdotal, "se quer permanecer fiel a si mesmo, é um serviço excelente e essencialmente espiritual. Que isto seja hoje acentuado contra as multiformes tendências a secularizar o serviço do padre reduzindo-o a uma função meramente filantrópica. O seu serviço não é o do médico, do assistente social, do político nem do sindicalista. Em certos casos, talvez, o padre poderá prestar, embora de maneira supletiva, estes serviços e, no passado prestou-os de forma egrégia. Mas hoje eles são realizados adequadamente por outros membros da sociedade, enquanto que o nosso serviço se especifica sempre mais claramente como um serviço espiritual. É na área das almas, das suas relações com Deus, e do relacionamento interior com os seus semelhantes que o sacerdote tem uma função essencial a desempenhar. É aqui que se deve realizar a sua assistência aos homens do nosso tempo. Certamente, sempre que as circunstâncias o exijam, ele não se eximirá de prestar também uma assistência material, mediante as obras de caridade e a defesa da justiça. Mas, como tenho dito, isto é, em definitivo, um serviço secundário, que não deve jamais fazer perder de vista o serviço principal, que é o de ajudar as almas a descobrir o Pai, a abrir-se para Ele e a amá-1'O sobre todas as coisas" (n. 7).

Já o Concílio Vaticano II pôs em realce o valor e a natureza do apostolado dos leigos e exortou-os a tomar a parte que lhes compete na missão da Igreja; mas o papel dos sacerdotes e dos religiosos é diferente. Não têm de tomar o lugar dos leigos e menos ainda devem descuidar o cargo que lhes é especificamente próprio.

9. As vossas Constituições registam claramente aqueles requisitos que são necessários a fim de a Companhia de Jesus contribuir eficazmente para a aplicação dos Decretos Conciliares como a Igreja espera que ela faça.

Primeiro existe a formação prolongada e sólida dos futuros apóstolos da Companhia. Na mesma fórmula do Instituto, depois de descrever o caminho típico da Companhia, Inácio escreve: "Porque a experiência nos ensinou que esta vida terrena traz consigo muitas e grandes dificuldades, julgámos ainda conveniente determinar que ninguém seja admitido a fazer parte desta Companhia, sem primeiro ser bem conhecida a sua vida e doutrina com demoradas e diligentíssimas provas" (Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus, n. 9).

Não deveis ceder à fácil tentação de deixar perder esta formação que tem tanta importância em todos e cada um dos seus aspectos, espiritual, doutrinal, disciplinar e pastoral; o prejuízo sucessivo superaria de longe o valor de qualquer resultado que talvez pudesse ser obtido.

Recordai-vos que, já nos tempos do vosso Fundador, a Companhia enfrentava os mesmos problemas angustiantes que enfrentais hoje. Também então havia demasiado poucos apóstolos, aptos e prontos para satisfazer adequadamente as necessidades pastorais.

10. Contudo, deveis ter presente que esta longa e exigente preparação tem como seu objectivo primário a formação dos homens que são preeminentes devido à sua união mútua com Deus. De facto, Inácio estava convencido que toda a actividade apostólica só tem valor e é eficaz se dimana daquela "união entre o instrumento e Deus", de que fala com tanta frequência. A primazia da vida interior é o próprio fundamento da visão e da espiritualidade de Inácio; constitui o âmago secreto de uma autêntica vida apostólica, porque o verdadeiro apóstolo vive acima da sua missão em total dependência de Deus e em união com Ele.

O vosso Fundador e como ele os seus primeiros companheiros foram sem dúvida homens de Deus; em resposta à chamada de livre doação por parte do Rei Eterno (Ex. Espirit., nn. 91-98), e tendo compreendido interiormente o Espírito que animava o próprio Jesus, o Único enviado pelo Pai, eles viveram como o Senhor pediu aos seus apóstolos que vivessem, quando lhes disse: "Permanecei em Mim e Eu permanecerei em vós. Como a vara não pode dar fruto por si mesma se não estiver na videira, assim acontecerá convosco se não estiverdes em Mim. Eu sou a videira, vós as varas; quem está em Mim e Eu nele, esse dá muito fruto; porque sem Mim nada podeis fazer" (Jo 15, 4-5).

Ainda outra vez, em virtude do que é o elemento mais rico no espírito do vosso Fundador, peço-vos reflictais sobre o sentido mais profundo da "Contemplação para obter o Amor", pela qual o homem apostólico vive na consciência da realidade que "todos os bens e dons descem do alto, assim como o meu moderado poder do sumo e infinito do alto, e assim a justiça, bondade, piedade, misericórdia, etc., assim como do sol descem os raios e da fonte as águas..." (Ex. Espirit., n. 237). Tal é o espírito do verdadeiro apóstolo que vive a sua missão em total dependência de Deus e em união com Ele.

Por esta razão na vida religiosa apostólica de que Santo Inácio, sob o impulso de Deus, foi um dos grandes Fundadores, não deverá haver separação "entre a vida interior e o apostolado". São dois elementos essenciais e constitutivos desta vida: são inseparáveis e exercem influência e compenetram-se mutuamente um ao outro.

11. Juntamente com a solidez da virtude, as vossas Constituições insistem numa solidez e vigor de doutrina, como é essencial para um apostolado eficaz. Por conseguinte, "Os Jesuítas são universalmente considerados como um esteio para a doutrina e a disciplina da Igreja inteira. Os bispos, os sacerdotes e os leigos costumam ver a Companhia como autêntico ponto de referência, e por isso seguro, para o qual é possível dirigir-se a fim de encontrar a certeza de doutrina, discernimento moral, lúcido e seguro, e autêntico alimento para a vida interior" (Carta do Cardeal Villot ao Padre Arrupe, 2 de Julho de 1973). O mesmo há-de ser verdade no futuro mediante aquela leal fidelidade ao Magistério da Igreja, e de modo particular ao Romano Pontífice, ao qual estais ligados por dever.

12. De facto, um laço especial liga a Companhia ao romano Pontífice, Vigário de Cristo na terra. Como já mencionei acima, Santo Inácio e os seus companheiros, tendo compreendido espiritualmente o verdadeiro significado e valor da missão de Cristo, e como ela se prolonga na história, dedicaram capital importância a este laço de amor e serviço ao Romano Pontífice, de modo que desejaram que este "voto especial" fosse elemento característico da Companhia. Ao descreverem a sua própria disposição comum, e o que esperavam daqueles que mais tarde seriam admitidos no Corpo Professo da Companhia, escreveram aquelas palavras que são e devem ficar gravadas no coração de todo o Jesuíta merecedor deste nome: "Por maior devoção à obediência da Sé Apostólica, para maior abnegação das nossas vontades, e mais certa direcção do Espírito Santo, julgámos da maior importância que cada um de nós, e todos os que para o futuro fizerem a mesma profissão, além daquele vínculo comum dos três votos, com este fim nos liguemos por um voto especial, pelo qual nos obrigamos a seguir tudo aquilo que o actual e os outros Romanos Pontífices no tempo existentes, mandarem, para proveito das almas e da propagação da fé. E assim fiquemos obrigados, quanto estiver na nossa mão, a ir sem demora para qualquer região aonde nos quiserem mandar, sem qualquer subterfúgio ou escusa" (Fórmula do Instituto da Companhia de Jesus, n. 3). É evidente que aqui tocamos na essência do carisma inaciano, e no qual está o verdadeiro coração da vossa Ordem. E é a isto que deveis permanecer sempre fiéis.

O Romano Pontífice, a quem estais ligados por este voto especial, é, nas palavras do Concílio Vaticano II, "o Supremo Pastor da Igreja" (Christus Dominus, 5). Como tal ele tem um particular ministério de serviço a exercer para o bem da Igreja universal; em tal serviço ele de bom grado aceita a vossa amorosa, dedicada e provada colaboração. Mas o mesmo Romano Pontífice também aceita a colaboração que lhe ofereceis no seu cargo de cabeça do Colégio Episcopal (cf. Lumen Gentium, 22), em união com os seus irmãos Bispos num ministério colegial de discernimento e harmonia, o qual, em virtude de carismas distintos, coordena em docilidade ao Espírito Santo as outras tarefas de serviço eclesial (cf. Mutuae Relationes, 6). Por esta razão estais igualmente ligados aos membros do Colégio Episcopal por um laço que de vós requer estardes unidos com eles na caridade pastoral e em estreita colaboração prática. Precisamente em consequência da vossa especial disponibilidade para a chamada do Romano Pontífice, estais em condições de trabalhar cada vez mais efectivamente com o Colégio dos Bispos e com cada um dos seus membros, que no Sucessor de Pedro encontram a sua perene e visível fonte e fundamento de unidade (cf. Lumen Gentium, 23).

Como explica o Concílio Vaticano II o Romano Pontífice também dispõe dos organismos da Cúria Romana no exercício do seu serviço à Igreja universal (cf. Christus Dominus, 9). Este facto requer leal colaboração entre a Companhia de Jesus e estes organismos. Devido às exigências dos vossos votos e à realidade do meu ministério, não podia ser de outro modo. Algumas das especiais tarefas confiadas à Companhia de Jesus e outros trabalhos importantes, que ela assumiu no período pós-conciliar, correspondem aos programas da Sé Apostólica, que são coordenados por alguns dos seus novos organismos. Mediante a colaboração com estes vários órgãos, a Companhia de Jesus pode encontrar a sua justa orientação em numerosas publicações e ao mesmo tempo dar enorme contributo à Igreja universal. Por seu lado, o Romano Pontífice oferece-vos, em nome de Cristo, de quem é Vigário, o seu total amor de reconhecimento pela vossa colaboração pessoal com ele, com o Colégio dos Bispos, e com a Cúria Romana inteira, que a Companhia de Jesus tem estado generosamente a ajudar de diversos modos desde há anos.

13. Não me detenho mais nestas reflexões, porque sei que nestes dias estais a considerar, juntamente com o Padre Delegado, os desejos expressos por mim acerca da Companhia e que, com espírito de fé e de fraterna colaboração, buscais os meios mais viáveis para os colocar em prática.

Só tenho que vos encorajar a prosseguir neste trabalho, que, assim como resultará particularmente proveitoso para a vossa Companhia, será também de grande utilidade a toda a Igreja, que olha para a Companhia com especial interesse e apreço.

A exemplaridade da vossa vida religiosa, a atmosfera espiritual das vossas comunidades, a austeridade no teor de vida e o fervor nas obras apostólicas, serão motivo de edificação para todo o povo de Deus e atrairão para a vossa Companhia vocações cada vez mais numerosas de jovens generosos, que aspiram não a uma mediocridade no seguimento de Cristo, mas ao radicalismo na sua consagração a Ele.

Assim estareis a preparar-vos de um modo excelente para a Congregação Geral. Estou certo de que esta preparação procederá de tal maneira que seja possível, dentro deste ano, a convocação da Congregação Geral, que não só há-de dar à Companhia um novo Prepósito-Geral, segundo o desejo manifestado há tempo pelo venerado Padre Arrupe, senão que juntamente há-de transmitir a toda a Companhia um novo estímulo para levar a cabo com renovado alento a sua missão, conforme as esperanças da Igreja e do mundo.

Acompanho-vos, por isso, com os meus votos e orações para que o Senhor, por intercessão d'Aquela, a quem costumais invocar como Rainha e Mãe da Companhia de Jesus, e dos vossos numerosos Santos e Beatos, abençoe e torne fecundo o vosso trabalho.

A estes Santos e Beatos, elevados já às honras dos altares, é consolador acrescentar também tantos outros dos vossos Irmãos que pelas suas insignes virtudes aguardam seja pela Igreja reconhecida oficialmente a santidade deles. A este propósito, é-me grato recordar que precisamente no passado 11 de Fevereiro tive a satisfação de declarar a heroicidade das virtudes do humilde e tão querido Irmão Coadjutor Francisco Gárate, falecido há cinquenta anos e oriundo da mesma terra que viu nascer o vosso Santo fundador, Inácio de Loyola.

A vida destes religiosos da Companhia, como a de tantos excelentes jesuítas que vivem e trabalham no mundo com um espírito de fé cheio de amor e uma entrega realmente exemplar aos homens, está a demonstrar que também no nosso tempo floresce a santidade na Companhia.

E, além disso, demonstra quão válida continua a ser a vocação dos Irmãos Coadjutores da Companhia, que, com a sua entrega total ao serviço do Senhor, mediante o desempenho dos seus cargos, colaboram eficazmente com os Padres para o ministério sacerdotal próprio da Companhia.

Com estes sentimentos, dou-vos de todo o coração, e mediante vós a todos os membros da Companhia, como penhor dos divinos dons, a minha Bênção Apostólica.

 

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