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PAPA FRANCISCO

MEDITAÇÕES MATUTINAS NA SANTA MISSA CELEBRADA
NA CAPELA DA CASA SANTA MARTA

O risco da misericórdia

Segunda-feira, 5 de junho de 2017

 

Publicado no L'Osservatore Romano, ed. em português, n. 25 de 22 de junho de 2017

Acolhendo os judeus perseguidos, nos anos da segunda guerra mundial, Pio XII testemunhou como se cumprem as obras de misericórdia: compartilhando, compadecendo-se, arriscando pessoalmente e sem medo de sarcasmo ou incompreensões. Com um apelo a redescobrir e a pôr em prática «as quatorze obras de misericórdia corporal e espiritual» o Papa convidou a fazer um exame de consciência pessoal.

Partindo da «primeira leitura da liturgia do dia, tirada do livro de Tobias» (1, 3; 2, 1-8): «Toda a história nos conta como era Tobit — Tobit, pai de Tobias — como era a sua vida de fé: um homem crente». Talvez, «inicialmente, se tenha gabado um pouco; mas não, não é assim».

«Simplesmente, é uma história que tem momentos difíceis e no final uma mensagem». E «hoje este trecho fala-nos do testemunho de Tobit, aquele testemunho misericordioso». Tobit «cumpre as obras de misericórdia». Lê-se no texto bíblico: «Eu, Tobit, andei nos caminhos da verdade e da justiça, todos os dias da minha vida. Dei muitas vezes esmola aos meus irmãos e compatriotas, que comigo foram deportados para Nínive, país dos assírios».

Em síntese, Tobit «era um homem rico, mas também generoso». Contudo, «em seguida verifica-se um episódio: quando na festa de Pentecostes ele mandou preparar um bom almoço e antes de se sentar à mesa pediu ao filho que fosse ver se havia algum irmão judeu pobre para o convidar a almoçar: fazia uma obra de misericórdia». Eis que, prosseguiu o Papa, «o filho volta — ele sentia-se feliz, era um dia de festa — e conta que tinham assassinado um irmão judeu». Imediatamente Tobit «levantou-se, deixou o almoço, sem o provar, depois foi à praça, tirou o homem da praça, levou-o para uma das dependências da casa, esperando o pôr do sol para o enterrar». E no final, lê-se no trecho, «ao voltar, lavei-me e — diz Tobit — entristecido, tomei a minha refeição».

Tobit pôs em prática «uma obra de misericórdia, uma das catorze obras de misericórdia corporais e espirituais». E «na lista das obras de misericórdia que a Igreja nos indica, esta é a última: rezar a Deus pelos vivos e pelos defuntos, e portanto também sepultar os mortos». Precisamente por esta razão, confidenciou o Papa, «hoje gostaria de falar sobre as obras de misericórdia».

«Uma obra de misericórdia significa não só compartilhar o que eu tenho». Certamente, «isto é muito importante: e Tobit compartilhava o dinheiro, porque era rico e dava esmolas». Mas «compartilhava também a amizade: convidava os pobres para almoçar». Por conseguinte, admoestou o Pontífice, não se trata «só de compartilhar, mas de se compadecer, ou seja, sofrer com quem sofre».

Aliás, realçou, «uma obra de misericórdia não consiste em fazer algo para estar bem com a própria consciência: pratico uma obra boa e assim estou mais tranquilo, tiro um peso dos meus ombros. Não!». Cumprir uma obra de misericórdia significa «também compadecer-se pela dor alheia», porque «compartilhar e compadecer-se vão de mãos dadas». Portanto, «é misericordioso quem sabe compartilhar e também compadecer-se com os problemas das outras pessoas». Eis as perguntas que Francisco sugeriu, exatamente como exame de consciência: «Sei compartilhar? Sou generoso, sou generosa? Quando vejo uma pessoa que sofre, que está em dificuldade, sofro também eu? Sei colocar-me no lugar dos outros, na situação de sofrimento?». As palavras de Tobias são eloquentes: «Entristecido, tomei a minha refeição». Exprimem bem a ideia de «compartilhar e de se compadecer. Esta é a primeira caraterística, o primeiro modo, a primeira consequência de uma obra de misericórdia: compartilho, compadeço-me».

«Mas depois há outra coisa» continuou o Papa. De facto, «fazer obras de misericórdia às vezes significa arriscar». E aqui pode ajudar-nos de novo o trecho do livro de Tobias proposto pela liturgia. «Ele já não tem medo!» diziam os vizinhos de Tobit; e «precisamente por este motivo já o procuraram novamente para o matar. Teve que fugir e agora aqui está ele novamente a sepultar os mortos».

«Muitas vezes corremos riscos» para cumprir uma obra de misericórdia, insistiu Francisco. «Pensemos aqui, em Roma, em plena guerra: quantos arriscaram, a começar por Pio XII, a fim de esconder os judeus, para que não fossem assassinados, para que não fossem deportados. Arriscavam a própria pele! Mas era uma obra de misericórdia, salvar a vida daquelas pessoas!». Eis por que devemos também «arriscar».

Nesta reflexão sobre o que comporta cumprir de forma autêntica uma obra de misericórdia, o Pontífice indicou ainda a possibilidade de acabar «às vezes» por «se tornar objeto de troça». É o caso de Tobit, o qual afirma: «Os meus vizinhos riam-se de mim». Talvez chamando-o «louco» e lançando-lhe um olhar severo dado que continuava a fazer gestos a favor do próximo, não obstante já tivesse sido «perseguido». Como se dissesse que este Tobit «não sabe viver bem... ».

Mas a sua história indica-nos as «três caraterísticas», as «três peculiaridades das obras de misericórdia»: compartilhar e compadecer-se, arriscar e também estar pronto para o sarcasmo». Tobit, prosseguiu Francisco, «não é como o rico Epulão, sobre o qual narra Jesus no Evangelho, que fazia festas e ignorava o pobre Lázaro, faminto à porta do seu palácio: sabia que estava ali, mas ignorava-o». Ao contrário, Tobit sabe «compartilhar e compadecer-se». E também «arriscar: corremos sempre o risco e, como eu disse, por vezes os riscos são graves». É necessário «saber que se fizermos obras de misericórdia, alguém dirá: “este homem é louco, esta mulher é louca: em vez de estar tranquilo, no conforto da própria casa, vai ao hospital, vai aqui e ali...”».

«As obras de misericórdia são o caminho para encontrar misericórdia», reafirmou o Pontífice. «Nas Bem-Aventuranças — explicou — Jesus diz: “Bem-aventurados os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia”». Mas ciente de que aquele «que é capaz de fazer uma obra de misericórdia, fá-lo porque sabe que ele foi, primeiro, “objeto de misericórdia”: foi o Senhor que lhe concedeu misericórdia». E «se fizermos estas coisas, é porque o Senhor teve piedade de nós: pensemos nos nossos pecados, nos nossos erros e no modo como o Senhor nos perdoou, nos perdoou a todos, teve misericórdia». Portanto, insistiu o Papa, «pelo menos façamos o mesmo com os nossos irmãos». Eis a essência das «obras de misericórdia».

«Gostaria de acrescentar outra coisa — confidenciou Francisco — que não é explícita, mas implícita no trecho que lemos: as obras de misericórdia, fazer obras de misericórdia é inconveniente». Poderíamos pensar: «Mas eu tenho um amigo doente, uma amiga doente, gostaria de ir visitá-lo, mas não tenho vontade, prefiro repousar, ver televisão, tranquilo...”». Porque «fazer obras de misericórdia significa sempre passar por algum desconforto». Este tipo de obras «incomodam, mas o Senhor sofreu o incómodo por nós: morreu na cruz, para nos dar misericórdia».

O Papa concluiu convidando a reconsiderar «hoje as obras de misericórdia; recordemo-las: são catorze, sete corporais e sete espirituais». E com um sorriso, acrescentou: «Não vou dizer aqui: “quem sabe quais são as obras de misericórdia, levante a mão”; não o vou dizer, porque tenho medo que sejam poucas as mãos que se levantarão». Porém, exortou a não perder a oportunidade de encontrar o modo de as praticar. Certamente, recordando «quais são», mas também perguntando-se: «Eu faço isto? Eu sei compartilhar, sei compadecer-me? Eu arrisco? Deixo-me incomodar para fazer uma obra de misericórdia?». É importante, porque «as obras de misericórdia são as que nos livram do egoísmo e nos fazem imitar Jesus mais de perto». E não é importante se, «alguém fizer troça de nós e disser “esta pessoa é louca, quantas coisas faz, em vez de se divertir...”». Dediquemos «hoje um pouco de tempo — far-nos-á bem — para pensar nas obras de misericórdia e para nos questionarmos: eu faço isto? Eu faço isso? Eu faço aquilo?».

 



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