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CARTA APOSTÓLICA
AMANTISSIMA PROVIDENTIA
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA JOÃO PAULO II
AOS BISPOS, SACERDOTES E FIÉIS DA ITÁLIA
NO SÉTIMO CENTENÁRIO DA MORTE
DE SANTA CATARINA DE SENA,
VIRGEM E DOUTORA DA IGREJA

 

Veneráveis Irmãos
e Dilectos Filhos
Saúde e Bênção Apostólica

INTRODUÇÃO

A amável Providência Divina em vários modos se manifesta protagonista da história, acendendo sempre novas luzes no caminho do homem. Muitas vezes escolhe pessoas aparentemente inaptas e de tal modo lhes eleva as faculdades naturais que as torna capazes de acções absolutamente superiores ao próprio alcance. E fá-lo não tanto para confundir a sabedoria dos sábios (1), quanto para colocar em relevo a Sua obra, que não precisa de apoios humanos, e para indicar mais claramente aos homens a que dignidade os eleva a Sua graça e a que grandezas maiores ainda pode e quer conduzi-los a Sua guia.

É isto especialmente evidente na vida e nas obras de Santa Catarina de Sena, de que este ano celebramos o 6° centenário da piedosa morte. É o motivo porque tenho o gosto de apontá-la novamente ao exemplo dos fiéis, não só da Itália mas do mundo inteiro. Nela, de facto, o Divino Espírito fez resplandecer maravilhosos dons de graça e de humanidade, por meio dos dons de sabedoria, de inteligência e de ciência, com os quais a mente humana se torna extremamente sensível às divinas inspirações, "no conhecimento das coisas divinas e das humanas" (2).

A ela podem, por conseguinte, aplicar-se as palavras do Salmista: "Alargastes o caminho dos meus passos, para que não resvalassem os meus pés (3). E ainda: "Correrei pelo caminho dos vossos mandamentos, logo que me dilateis o coração" (4).

I.
A EXPERIÊNCIA HUMANA E DIVINA

As condições da Itália e da Europa não eram prósperas, quando veio à luz em Sena, em 1347, a pequena Catarina. Já se apresentava no horizonte a tristemente famosa "peste negra", que no ano seguinte assolou todas as regiões e semeou desolação e morte em todos os lugares e quase em cada família.

Outros males afligiram a sociedade civil, como as guerras, particularmente a dos cem anos entre a França e a Inglaterra, e as incursões dos bandos mercenários. No mundo religioso, o principal acontecimento foi a estadia dos Papas em Avinhão e depois o grande cisma do Ocidente, que se prolongou até 1417. A história da Virgem de Sena insere-se profundamente nestas circunstâncias, nas quais teve mesmo o papel de protagonista.

Filha de um tintoreiro, penúltima de 25 filhos, Catarina tomou muito depressa consciência das necessidades do mundo e, atraída pelo ideal apostólico dominicano, quis entrar na ordem terceira ou, como então se dizia em Sena nas Mantelatas. Apesar de não serem religiosas nem viverem em comunidade, usavam o hábito branco e o manto preto dos Frades Pregadores. Novíssima, já se distinguia pela caridade para com os pobres e os doentes, pela paciência em suportar as maledicências dos homens e pelas batalhas interiores com o demónio, pela sabedoria e humildade das atitudes e dos pensamentos.

Entretanto ia-se exercitando num corajoso programa ascético, baseado em critérios eficientes, que mais tarde inculcaria aos próprios discípulos: "Não tolerar os movimentos (da natureza desordenada) que não sejam correctos" (5).

Andava à sua volta um grupo variado de discípulos de todas as condições, atraídos pela fé pura e pela clara proposição da palavra de Deus, sem meios termos nem compromissos. Eram leigos, mantelatas e religiosos de várias ordens, alguns conquistados por factos prodigiosos. Todos recebiam dela uma singular promessa, cujo valor muitas vezes experimentavam: a de os acompanhar onde quer que estivessem e pagar até pelos erros que cometessem (6).

O Senhor instruía-a, como um mestre a sua aluna, e descobria-lhe pouco a pouco "aquelas coisas que lhe fossem úteis à alma" (7).

O progresso espiritual atingiu o auge com as núpcias espirituais na fé, que podiam parecer o selo de uma vida consagrada ao isolamento e à contemplação. Pelo contrário, ao dar-lhe o anel invisível, pretendia uni-la a Si nas empresas do Seu reino (8). A moça do povo de vinte anos via isto como sinal de separação entre ela e o Esposo celestial, mas Este pelo contrário assegurou-lhe que pretendia uni-la mais a Si "por meio da caridade com o próximo" (9), isto é, ao mesmo tempo no plano da mística interior e no da acção exterior ou da mística social, como foi dito (10).

Foi como que um impulso para espaços mais altos, que se lhe abriam diante da mente e da iniciativa. Passou da conversão de pecadores isolados à reconciliação entre pessoas ou famílias adversárias; e à pacificação entre cidades e repúblicas. Não receou passar entre facções armadas nem se deteve perante o alargar-se dos horizontes, o que no princípio a tinha aterrado até a fazer chorar. O impulso do Mestre divino manifestou nela como que uma humanidade de acréscimo. Para ela, filha de artesãos e mulher sem letras, isto é, sem escola nem instrução, a vista do mundo e seus problemas ultrapassou enormemente os limites do seu bairro, até lhe projectar a acção para espaços mundiais. Para a ousadia dela já não havia limites, nem para a sua ansiedade pela salvação dos homens. Um dia, conta ela mesma, o Senhor pôs-lhe "a cruz às costas e uma oliveira na mão", para as levar a um e outro povo, o cristão e o infiel, como se Cristo a erguesse às próprias dimensões universais da salvação (11).

Para a tornar mais conforme ao Seu mistério de redenção e prepará-la para um incansável apostolado, o Senhor concedeu a Catarina o dom dos Estigmas. Foi o que sucedeu na igreja de Santa Cristina, em Pisa, no 1° de Abril de 1375.

Catarina tem 29 anos e chegou ao ponto de tomar consciência da grandeza do seu encargo: "recompor o equilíbrio da cristandade" (12). Havia anos que propugnava a "santa mensagem", isto é, a cruzada para a libertação dos Lugares Santos, tanto para tirar as armas cristãs das lutas fratricidas (13), como para dar o "condimento da fé" aos infiéis (14).

Da mesma maneira e, se possível, ainda mais apaixonada, animava o Papa à reforma moral da Igreja, começando com a eleição de bons pastores. Sobre este tema encontrava as tonalidades mais inflamadas, porque para ela "a Igreja não é senão o próprio Cristo" (15). Repreende e denuncia as desordens, mas com incrível tristeza, manifestando pela Igreja ternura de mãe, junta à virilidade das propostas, quando escreve a Gregório XI: "Ide depressa ter com a vossa esposa, que vos espera toda pálida, para lhe restituirdes a cor" (16). "Reponde-lhe o coração, que perdeu, da ardentíssima caridade: porque tanto sangue lhe sugaram iníquos devoradores, que está toda empalidecida" (17).

Avizinha-se agora o momento da sua empresa mais gloriosa. Em Junho de 1376 dirigiu-se a Avinhão, coma medianeira de paz entre a Santa Sé e Florença. A questão era difícil: resolver-se-ia dois anos mais tarde, não se dispensando porém nova mediação sua. Mas Catarina tinha a peito coisas maiores ainda. Fizera-se preceder pelo seu confessor Frei Raimundo de Cápua, confiando-lhe a carta recém-citada, em que expõe ao Papa "da parte de Cristo crucificado" as três principais coisas que deve fazer para ter paz em todas as direcções: estabelecer dignos pastores, levantar a bandeira da cruz para a cruzada, e reconduzir a sede papal a Roma.

As suas palavras ressoam com vigoroso eco profético, especialmente quando toca a tecla da pobreza da Igreja e do prejuízo que a esta traz o cuidado dos bens temporais. Sobre o regresso do Vigário de Cristo à sua sede não tem hesitações: "Respondei ao Espírito Santo que vos chama. Eu digo-vos: vinde, vinde, vinde". E, depois de o exortar a vir "como manso cordeiro", para acrescentar força à sua mensagem acrescenta com respeitosa franqueza: "sede-me homem viril e não temeroso" (18). A pena da longa espera e da ruína das almas arranca-lhe do coração, numa carta sucessiva, este grito: "Ai de mim, Pai, morro de dor e não posso morrer" (19).

Chegada a Avinhão a 18 de Junho, pôde fazer valer de palavra, mesmo em encontros directos com o Papa, o sentimento improrrogável do dever, falando-lhe sem presunção nem timidez. O piedoso Pontífice, que se demorava em tomar a última decisão, houve de convencer-se que por boca dela falava realmente o Senhor e o certificava da Sua vontade. Gregório XI deixou definitivamente Avinhão a 13 de Setembro de 1376 e entrou em Roma, entre o delírio do povo em festa, a 17 de Janeiro de 1377.

Mais tarde, depois de uma longa missão em Valdórcia, Catarina retomou nas mãos a questão da paz com os florentinos, e, num dos tumultos do verão de 1378, correu até perigo de ser assassinada; ela, que se vira quase no martírio, escrevia depois quase desiludida: "O Esposo eterno muito zombou de mim" (20).

Infelizmente naquele ano, falecido o último Papa francês e eleito entre tempestuosos incidentes Urbano VI, homem sem dúvida um tanto rígido mas dedicado à reforma dos costumes, nasceu o grande Cisma, que iria perturbar a unidade da Igreja por quase 40 anos. A Santa, que o previra, sentiu penetrar na sua carne a ferida que afligia a Igreja. Agora era tempo de abandonar qualquer outro pensamento e dedicar-se com todas as forças a lutar pela unidade do Corpo místico e pelo único verdadeiro Papa. Doravante as suas cartas ardorosas poder-se-ão chamar mensagens da unidade cristã. O amor pelo Papa e pela Igreja arde na sua alma.

Nada de admirar que, recebendo convite do Papa, acorresse a Roma: devia actuar sobre o coração mesmo da Igreja. Sugeriu e animou que se unissem ao "doce Cristo na terra" homens de espírito puro para o ajudarem com o conselho, a oração e o prestígio da vida santa. A sua residência na rua do Papa (coisa significativa!) tornou-se centro de actividade diplomática. Cartas e mensageiros partiam para toda a parte: para os poderosos da Itália e para os reis da Europa, para os Cardeais rebeldes e para os servos de Deus que era preciso animar. Animava os soldados que se batiam por Urbano, aplacava o povo romano em tumulto, enfreava os ímpetos do Papa e a custo se dirigia a orar junto do túmulo do Apóstolo em São Pedro. Foi um ano e meio de trabalho extenuante e orações apaixonadas: "O Deus eterno, recebe o sacrifício da minha vida neste corpo místico da santa Igreja" (21). Assim, entre invocações e desejos veementíssimos, extinguiu-se em Roma no domingo 29 de Abril de 1380, aos trinta e três anos como o seu Esposo Crucificado.

O corpo foi sepultado na igreja de "Santa Maria sopra Minerva", em Roma, onde se venera debaixo do altar-mor; a cabeça porém foi enviada a Sena, onde a receberam triunfalmente o clero e o povo, estando também presente a mãe de Catarina, Lapa. Conserva-se na igreja de São Domingos.

Catarina foi canonizada pelo Sumo Pontífice Pio II com a bula Misericordias Domini, de 29 de Junho de 1461. Foi assim apontada solenemente à Igreja universal como modelo de santidade e exemplo de sublime grandeza, a que uma mulher simples do povo pode chegar com a graça do Todo-Poderoso.

II.
OS ESCRITOS

Literariamente Santa Catarina é um caso singular. Não andou nunca na escola, nem soube ler e escrever, senão talvez muito tarde mas imperfeitamente. Ditou todavia um conjunto de escritos, que a tornam um clássico de notável relevo na literatura trecentista italiana e entre os escritores místicos, tanto que mereceu o título de Doutora da Igreja, que lhe foi conferido por Sua Santidade Paulo VI a 4 de Outubro de 1970.

Conservaram-se dela 381 Cartas (22), dirigidas a todo o género de pessoas, a humildes e grandes. É epistolário de rica espiritualidade, espelho de uma alma que vive intensamente aquilo que exprime e encontra expressões singelas e tons de comovedora eloquência, muitas vezes até poéticos. Arde nas cartas constante paixão pelo homem, imagem de Deus e pecador, por Cristo Redentor, e pela Igreja, que é o campo em que o Salvador faz frutificar o tesouro do Seu sangue na salvação do homem.

Vive nelas espírito sensível a todos os trabalhos da humanidade, imaginação ardente e fé, que abrasa a palavra ao denunciar os vícios, mas a torna doce até à ternura ao admoestar os tíbios e animar os fracos. Não há coisa nenhuma de falso e convencional, mas franco vigor mesmo na piedade.

Além disso, Santa Catarina, entre 1377 e 1378, ditou em vários períodos um livro, que é ordinariamente intitulado Diálogo da Divina Providência ou da Divina doutrina (23), no qual a sua alma; em colóquio extático com o Senhor, refere o que a Eterna Verdade lhe diz, respondendo às suas perguntas quanto ao bem da Igreja e dos seus filhos; e do mundo inteiro. O livro é caracterizado por tom profético, por equilíbrio do pensamento e lucidez da expressão. Toca os mistérios mais augustos da nossa religião e os problemas mais difíceis da ascética e da mística. O pensamento constante e implorante é dirigido aos irmãos do mundo, que vê perderem-se nos caminhos do pecado e, procura sacudir do torpor mortal; ao mesmo tempo, com fina intuição psicológica lança fachos de luz sobre o caminho da perfeição, exaltando a elevação do homem que, seguindo Cristo obediente, encontra o caminho seguro para a Trindade bem-aventurada. Amplidão de perspectiva, uso de análises da experiência, e flamejar de imagens e conceitos fazem desta obra "uma das jóias da literatura religiosa italiana" (24).

Vêm por fim as Orações (25), recolhidas dos seus lábios nos últimos anos da vida, quando a Santa dava largas à alma e as ansiedades, falando sem intermediários com o Senhor. São autênticas improvisações, que brotam espontâneas do seu espírito, mergulhado na luz divina, e do coração que sofre com as misérias dos homens, sem banalidades de conceitos ou de petições, mas com tonalidade apaixonada e confiante, e expressões muitas vezes ousadas mas de absoluta ortodoxia.

A imagem mais expressiva e ampla desta mestra de verdade e amor é a da Ponte, construção simbólica que antecipa de algum modo a Subida ao monte Carmelo de São João da Cruz. A alegoria descreve, em resumida e subtil análise psicológica, o caminho do homem que sobe do pecado ao cume da perfeição. Caracteriza-a a insistência cristológica, sobre que se apoia toda a estrutura. De facto a Ponte é Jesus Cristo, seja com a figura do Seu corpo elevada na cruz, seja com a Sua doutrina, seja ainda com a Sua graça.

Sobre o abismo intransponível aberto pelo pecado e sulcado pelo rio em turbilhões da corrupção mundana, foi lançada a Ponte a unir a terra com o céu, quando o Filho de Deus encarnou, unindo em si a natureza divina com a natureza humana (26). É o caminho único para aqueles que desejam verdadeiramente chegar à vida eterna. Cada homem, seguindo a atracção da graça de Cristo ("atrairei tudo a Mim"), vai-se libertando pouco a pouco do pecado, do temor imperfeito ou servil e do amor próprio quer sensível quer espiritual, até ficar despojado de toda a imperfeição.

Ao mesmo tempo, é seguido o caminho em subida, que está todo marcado pelo amor: Catarina, de facto, encontra-se com São Tomás e com os melhores teólogos, pensando que a perfeição "está na virtude da caridade" (27); e concorda também com o Concílio Vaticano II (28), quer nisto quer na universalidade do chamamento à santidade (29). Estabelece portanto em Cristo-Ponte três degraus (chama-lhes popularmente scaloni) de ascensão espiritual, que significam tanto as três potências da alma elevadas pelo amor, como os três estados progressivos do espírito: imperfeitos, perfeitos e perfeitíssimos (30).

Existe portanto uma ponte-escada, com o primeiro degrau que é o amor de servo, o segundo o amor de amigo e o terceiro o amor de filho (31). A divisão em três não é puramente esquemática e tradicional, mas didacticamente aparece acompanhada por anotações particulares, características dos degraus da evolução vertical e do modo de vencer as etapas inferiores, com uma propriedade psicológica fundada na observação da experiência espiritual.

Também os capítulos seguintes do diálogo (32), que se costumam chamar Tratado das lágrimas, procedem segundo a mesma via ascensional mas com absoluta originalidade de esquema, que demonstra na Santa a dominadora da personalidade própria e da didáctica desenvolvida e precisa, apesar da improvisação do ditado.

Todavia o progresso espiritual não é limitado ao âmbito de cada pessoa, Santa Catarina sabe muito bem que existe o próximo e que tem muita importância; e muito insiste na inseparabilidade entre o amor do próximo e o amor de Deus, como aliás põe em evidência o mesmo Concílio Vaticano II (33). À Santa pertence a surpreendente afirmação, colocada na boca do Senhor: "Faço-te saber que toda a virtude se cria por meio do próximo, e também todo o defeito" (34).

Catarina quer dizer que, pela comunhão da caridade e da graça, o próximo tem sempre parte no bem e no mal que fazemos (35). Mas o seu pensamento vai mais longe: o próximo é o "meio" por excelência para a caridade em acto, o lugar em que toda a virtude se exercita necessariamente, se não exclusivamente.

Diz o Eterno Pai: a alma, "que verdadeiramente Me ama, também assim presta serviço ao próximo; ... e quanto a alma Me ama a Mim, tanto o ama a ele, porque o amor para com ele sai de Mim. É este o meio que Eu vos apresentei para exercitardes e provardes a virtude em vós, porque, não podendo vós ser-Me de nenhuma utilidade, deveis ser de utilidade ao próximo" (36).

Este princípio, repetido inúmeras vezes, faz do próximo o terreno sobre que se exprimem, se exercem, se provam e se medem a caridade fraterna, a paciência e a justiça social. No contacto com os outros, até as rivalidades se tornam meio de verificação das acções virtuosas (37): e mantendo-se firme a comparação existencial com o amor de Deus, "com aquela perfeição com que amamos a Deus, com essa mesma amamos a criatura racional" (38).

A insistência no princípio de solidariedade serve também para demonstrar a raiz profunda da fraternidade humana que nos foi ensinada por Cristo. Os homens vivem esta realidade: cada um é quase completamente dos outros. A Providência criou-os dotando-os de qualidades físicas e morais diferenciadas de indivíduo para indivíduo, de maneira que tem cada um necessidade dos outros, "para que assim, por força, tenhais matéria para usar a caridade uns com os outros" (39), e fiquem todos ligados pela necessidade do auxilio mútuo, como os membros do corpo entre si (40).

De modo semelhante, na Igreja universal há solidariedade entre sector e sector. O que é figurado na alegoria das três vinhas: a pessoal, a do próximo, e a universal do povo de Deus. As primeiras duas estão de tal maneira unidas "que nenhum pode fazer bem a si sem o fazer ao próximo, nem mal sem que o faça a ele" (41). Mas na solidariedade com a terceira vinha está o sentido catariniano do equilíbrio e da ordem.

É na vinha universal que está plantada a única vide verdadeira, Jesus Cristo, sobre a qual todas as outras devem estar enxertadas para d'Ele receberem a vida (42). Nela o principal trabalhador é o Papa, "Cristo na terra, que nos deve servir o sangue d'Ele" (43); do Papa todo o outro trabalhador depende, por obediência e porque ele "tem as chaves do sangue do humilde Cordeiro" (44). Imagens estas transparentes do primado de Pedro — primado de magistério e de governo estabelecido pela "primeira doce Verdade" (45) — que une o carisma e a instituição em Cristo, fonte única, que é a fonte única de ambos.

Nesta lógica se inspirou, em favor do pontificado romano, toda a actividade de Catarina, anjo tutelar da Igreja.

 

CONCLUSÃO

O papel excepcional desempenhado por Catarina de Sena, segundo os planos misericordiosos da Providência divina na história da salvação, não terminou com o seu feliz trânsito para a pátria celeste. Ela, na verdade, continuou a influir salutarmente na Igreja, tanto pelos luminosos exemplos de virtude como devido aos admiráveis escritos. Por isso os Sumos Pontífices meus Predecessores lhe exaltaram concordemente a perene actualidade, propondo-a continuamente à admiração e imitação dos fiéis.

O Sumo Pontífice Pio II, na Bula de Canonização, chamou-lhe com palavras quase proféticas "illustris et indelebilis memoriae virginem" (46). Pio IX proclamou-a, em 1866, segunda padroeira de Roma. São Pio X propô-la como modelo às Mulheres da Acção Católica, nomeando-a padroeira delas. Pio XII proclamou São Francisco de Assis e Santa Catarina de Sena padroeiros primários da Itália, com a Carta Apostólica Licet commissa de 18 de Junho de 1939; e, no memorável discurso em honra dos dois Santos, pronunciado na igreja de "Santa Maria sopra Minerva" a 5 de Maio de 1940, este Papa tributou à Santa de Sena o seguinte esplêndido elogio: "Neste serviço da Igreja, vós bem compreendeis, dilectos filhos, como Catarina se antecipa aos nossos tempos, com uma acção que dilata a alma católica e a põe ao lado dos ministros da fé; sujeita sim, mas também cooperadora na difusão e defesa da verdade e da restauração moral e social da convivência humana" (47). Nem menos palpitantes de actualidade foram os repetidos louvores que à figura e actividade apostólica de Catarina tributou o Sumo Pontífice Paulo VI, por ocasião da festa anual da Santa. Parecem-me, entre outras, altamente significativas para os nossos tempos as seguintes palavras do meu venerado Predecessor. "Santa Catarina, disse ele a 30 de Abril de 1969, amou a Igreja na sua realidade que, bem sabemos, tem aspecto duplo: um místico, espiritual e invisível, o essencial e fundido com Cristo Redentor glorioso, que não cessa de derramar o Seu sangue (quem falou tanto do sangue de Cristo como Catarina?) sobre o mundo por meio da Sua Igreja; o outro, humano, histórico, institucional e concreto, mas nunca separado do divino. Vale a pena perguntarmos se os nossos modernos críticos do aspecto institucional da Igreja são capazes de compreender esta simultaneidade." (48). Mas Paulo VI testemunhou, com autoridade maior ainda, a sua estima pelo valor perene da doutrina ascética e mística de Santa Catarina, quando a elevou, juntamente com Santa Teresa de Ávila, à dignidade de Doutoras da Igreja e lhes celebrou a sobre-humana sabedoria na Basílica de São Pedro a 4 de Outubro de 1970 (49).

Na vida e na actividade, quer literária quer apostólica, de Santa Catarina de Sena, verificou-se na realidade tudo o que tive ocasião de recordar a um grupo de Bispos em visita ad limina: "O Espírito Santo está activo a iluminar as mentes dos fiéis com a Sua verdade e a inflamar-lhes os corações com o amor. Mas estes conhecimentos de fé e este sensus fidelium não são independentes do magistério da Igreja, que é instrumento do mesmo Espírito Santo e assistido por Ele. E só quando os fiéis são alimentados pela palavra de Deus, fielmente transmitida na sua pureza e integridade, que os seus próprios carismas são plenamente activos e frutuosos" (50).

Oxalá, dilectíssimos Irmãos e Filhos, o exemplo de Santa Catarina de Sena — cuja vida foi tão admiravelmente activa e fecunda para a pátria e para a igreja, porque dócil ao "instinctus" do Espírito Santo e guiada pelo Magistério da Igreja — oxalá suscite em muitíssimas almas admiração mais viva e desejo de imitação das heróicas virtudes. Teremos assim nova confirmação de a sua morte ter sido verdadeiramente — e continuar a sê-lo — "preciosa aos olhos do Senhor", como é "a morte dos Seus santos" (51).

Depois de expressos estes sentimentos da nossa alma, a Vós, veneráveis Irmãos e aos dilectos filhos da Itália, e também a todos os que recordam piedosamente em todo o mundo este centenário da morte de Santa Catarina de Sena, nomeadamente à Ordem dos Frades Pregadores e às Monjas e Irmãs que vivem vida consagrada a Deus segundo as normas da mesma Família religiosa, de todo o coração concedemos a Bênção Apostólica.

Dado em Roma, junto de São Pedro, no dia 29 do mês de Abril, em memória de Santa Catarina de Sena, Virgem e Doutora da Igreja, no ano de 1980, segundo do Nosso Pontificado.

 

IOANNES PAULUS PP. II 


Notas

(1) 1 Cor 1, 19.

(2) S. Th., Ia. IIae, q. 68, a. 5 ad 1.

(3) Sl 17 (18), 37.

(4) Sl 118 (119), 32.

(5) Diálogo, c. 73 (ed. Cavallini, p. 161. Cfr. c. 60 e Cartas, passim.

(6) Cfr. Carta 99 sec. Tommaseo; ed. Dupré-Theseider, VII.

(7) Raimundo de Cápua, Legenda maior, in Acta Sanctorum, Abril (trad. it. Tinagli, ed. 3 e 4; 1969-1978), par. 84.

(8) Legenda maior, 115.

(9) Ibidem.

(10) Leclerq J., La mystique de 1'apostolat, 1922-1947.

(11) Carta 219, ou LXV.

(12) La Pira G., na revista "Vita cristiana", 1940, p. 206.

(13) Cfr. Carta 206, ou LXIII.

(14) Carta 218, ou LXXIV.

(15) Carta 171, ou LX.

(16) Carta 231, ou LXXVII.

(17) Carta 206, ou LXIII.

(18) Ibidem.

(19) Carta 196, ou LXIV.

(20) Carta 295.

(21) Carta 371.

(22) Várias ediç. modernas (Tommaseo, Misciattelli, Ferretti, Meattini) todas com a numer. de Tommaseo. Edição critica (88 cartas) com numeração romana, preparada por Dupré-Theseider, 1940.

(23) Edição preparada por G. Cavallini, Roma 1968.

(24) Underhill E., Mysticism, ed. Meridian Book, 1955, p. 467.

(25) Ediç. crítica preparada por Cavallini G., Roma 1978.

(26) Diálogo, cc. 21-22; Cartas 272.

(27) Diálogo, c. 11.

(28) Lumen gentium, c. V.

(29) Diálogo, c. 53.

(30) Diálogo, c. 26.

(13) Diálogo, cc. 56-77.

(32) Diálogo, cc. 87-96.

(33) Lumen gentium, c. V.

(34) Diálogo, c. 6.

(35) Cfr. DEMAN T., La parte del prossimo nella vita spirituale secondo il Dialogo (in "Vita cristiana", 1947, n. 3, pp. 250-258).

(36) Diálogo, c. 7.

(37) Diálogo, cc. 7-8.

(38) Carta 263. Cfr. Diálogo, cc. 7 e 64.

(39) Diálogo, c. 7.

(40) Diálogo, c. 148.

(41) Diálogo, c. 24.

(42) Ibidem.

(43) Cartas 313 e 321.

(44) Carta 339; cfr. Cartas 309 e 305.

(45) Carta 24, ou X.

(46) Bula Misericordias Domini: Bull. Rom., vol. V, 1860, p. 165.

(47) Discorsi, vol. II, p. 100.

(48) Insegnamenti di Paolo VI, VII, 1969, p. 941.

(49) Cfr. AAS 62, 1970, pp. 673-678.

(50) Cfr. Alocução a um grupo de Bispos da Índia, 31.5.1979: AAS 71, 1979, p. 998.

(51) Sl 116, 15.

 



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