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VIAGEM APOSTÓLICA À ESPANHA
31 DE OUTUBRO - 9 DE NOVEMBRO DE 1982

SANTA MISSA NO ESTÁDIO «NOU CAMP» DE BARCELONA

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

Barcelona, 7 de Novembro 1982

 

Queridos irmãos e irmãs

1. Encontramo-nos reunidos neste estádio para celebrar o dia do Senhor. Unidos ao vosso Pastor e a tantos irmãos de Barcelona e de muitas outras partes.

A segunda leitura desta Missa, tomada da carta aos Hebreus, apresenta a importância do acto interno de oferecimento de Jesus ao Pai. Realizou-o, pela primeira vez, ao entrar no mundo pela Encarnação (cf. Heb 10, 5); o seu oferecimento refere-se então ao seu futuro sacrifício redentor.

Mantendo sempre esse oferecimento interno. Ele dá unidade de sentido a toda a sua vida terrena. O oferecimento acompanhou as dores e os sofrimentos da cruz, e deu-lhes o valor redentor que sem esse acto de oblação não teriam. Mas ainda depois da ressurreição e ascensão, a vida de Cristo continua a ter unidade de sentido, dado que também agora Jesus continua a oferecer ao Pai as dores já sofridas na Paixão.

A epístola utiliza a liturgia veterotestamentária do dia da expiação, como esquema explicativo do mistério redentor. Nela as vítimas imoladas eram queimadas fora do acampamento. Também Cristo foi imolado no Calvário, outrora fora da cidade (cf. Heb 12, 11 ss.). O Sumo Sacerdote entrava no Sancta Sanctorum para oferecer a Javé o sacrifício. Também Cristo, Sacerdote da Nova Aliança, ressuscitou e subiu aos céus, para entrar assim no santuário celeste e de modo perene apresentar ao Pai o sangue que um dia derramou sobre a cruz.

É o mesmo Cristo que vem ao altar, repetindo o seu oferecimento ao Pai por nós. A insignificância dos nossos desejos de entrega a Cristo e os desejos de levarmos uma vida cristã, têm de ser colocados sobre o altar, para que fiquem unidos ao oferecimento de Jesus. A nossa humilde entrega — insignificante em si como o azeite da viúva de Sarepta ou o óbolo da pobre viúva — torna-se aceitável aos olhos de Deus pela sua união à oblação de Jesus.

E em que há-de consistir a nossa entrega a Cristo? De imediato digo-vos que a primeira coisa que o Papa e a Igreja esperam de vós é que, diante da vossa própria existência, diante da mesma Igreja e da actual problemática humana, adopteis atitudes verdadeiramente cristãs.

2. A vossa vida como seres humanos tem já em si uma grandeza e dignidade únicas. Elas impõem uma recta valorização, para a viverdes em coerente respeito das exigências de verdade, de honestidade, de uso correcto do magnífico dom divino da liberdade em todas as suas dimensões.

Mas esta esplêndida realidade não pode encerrar-se apenas nesses horizontes, por mais que não possa prescindir deles. Há-de abrir-se à novidade que Cristo veio trazer ao mundo, ensinando a cada homem que é filho de Deus (cf. Mt 6, 9-15), redimido com o sangue do mesmo Cristo (Ef 1, 7), co-herdeiro com Ele (cf. Rom 8, 17), destinado a uma transcendente meta (cf. Rom 8. 20-23; Ef 2, 6 s.).

Seria a maior mutilação privar o homem dessa perspectiva, que o leva à dimensão mais alta que pode ter. E que, em consequência, lhe oferece o meio mais apto para pôr em prática as suas energias e entusiasmo.

Como escrevi na Encíclica Redemptor hominis: "Uma tal união de Cristo com o homem é em si mesma um mistério, do qual nasce 'o homem novo', chamado a participar na vida de Deus, criado novamente em Cristo para a plenitude da graça e da verdade. A união de Cristo com o homem é a força e a nascente da força, segundo a incisiva expressão de S. João no prólogo do seu Evangelho: 'O Verbo deu-lhes o poder de se tornarem filhos de Deus'" (n. 18).

Aqui se encontra o fundamento do conhecimento em profundidade do valor da própria existência. O fundamento da nossa identidade como cristãos. Dai há-de derivar uma atitude prática coerente, feita de estima para com o ser humano que seja boa e informada eficazmente pela fé.

3. Para um cristão é parte muito importante a relação que ele estabelece com a Igreja. Relação que pode ir de uma polémica rejeição, à aceitação parcial; de uma crítica sistemática, à fidelidade amadurecida e responsável.

Um primeiro delineamento que se impõe, para evitar confusões ou perspectivas falsas, é considerar a Igreja na sua natureza verdadeira: uma sociedade de tipo espiritual e com fins espirituais, encarnada nos homens de cada tempo (cf. Lumen gentium, 2). Sem afã algum de entrar em conflito com os poderes civis, para se ocupar dos assuntos meramente materiais ou políticos, que ela reconhece de bom grado não ser. da sua incumbência. Sem renunciar tão-pouco à sua missão, que é mandato recebido de Cristo, de formar na fé a consciência idos seus fiéis. Para que eles, no seu dúplice aspecto de cidadãos e fiéis, contribuam para o bem em todas as esferas da vida, de acordo com as suas próprias convicções e com o devido respeito às dos outros.

A Igreja fundada por Cristo sobre Pedro e os Apóstolos, missão continuada hoje nos seus Sucessores (cf. Lumen gentium, 18), é sacramento universal de salvação, sinal e instrumento da graça de Cristo na qual renascemos para a vida nova (cf. Lumen gentium, 1 e 2). Assim é ela, pela sua figura visível, que recorda aos homens a presença e acção divinas. E ainda, pela pregação da Palavra de Deus e a administração dos Sacramentos, fontes de salvação. Como também, através da vida dos seus fiéis, chamados a contribuir, cada um segundo a sua condição, para a difusão da mensagem evangélica e para tornar Cristo presente em todos os ambientes da sociedade.

Destas premissas deriva uma atitude bem concreta para o cristão. A Igreja foi constituída por Cristo, e não podemos pretender fazê-la segundo os nossos critérios pessoais. Tem por vontade do seu Fundador uma guia formada pelo Sucessor de Pedro e dos Apóstolos: isto implica, por fidelidade a Cristo, fidelidade ao Magistério da Igreja.

Ela é Mãe, na qual renascemos para a vida nova em Deus: a mãe deve ser amada. Ela é santa no seu Fundador, nos seus meios e na sua doutrina, mas formada por homens pecadores; deve-se contribuir positivamente para a melhorar e ajudá-la a uma fidelidade sempre renovada, que não se consegue com criticas corrosivas.

A Igreja oferece cada dia a palavra de salvação e os sacramentos instituídos por Cristo e não depende de critérios de número ou de moda; isto obriga ao respeito à voz da Hierarquia, critério e guia imediatos na fé. Ela está formada por todos nós, Povo de Deus (cf. Lumen gentium, 9); isto impõe a colaboração responsável de cada cristão ou grupo, das suas forças, da sua capacidade vivencial, mas em leal escuta dos legítimos Pastores. Ela ama o homem na sua integridade, nada do que é verdadeiramente humano lhe é indiferente; mas lutando por elevar o homem, não esquece que a sua missão essencial própria é proporcionar-lhe a salvação.

4. Diante da problemática do mundo actual em que vive imerso, o cristão não pode deixar de adoptar uma atitude que reflecte o conceito que tem de si mesmo, à luz da sua relação com a Igreja.

Consciente do seu dever de "dar um sentido mais humano ao homem e à sua história" (Gaudium et spes, 40), o cristão deverá estar na linha de frente como testemunha da verdade, honestidade e justiça. É a primeira consequência do valor humanizador da fé e do dinamismo criador da mesma.

Bem radicado nessa fé e a partir de uma clara e corajosa convicção evangélica, não duvidará ele em assumir a sua parte de responsabilidade, para "instaurar em Cristo a ordem das realidades temporais" (Apostolicam actuositatem, 7). Os cristãos nunca poderão esquecer que devem ser "fermento e alma da sociedade" (Gaudium et spes, 40) e que nas tarefas temporais "a própria fé ainda os obriga mais a cumpri-las segundo a vocação própria de cada um" (ibid., 43).

O filho da Igreja há-de viver a convicção de que deve ser cristão da fidelidade a Cristo, para ser cristão da coerência no amor ao homem, na defesa dos seus direitos, no compromisso pela justiça, na solidariedade com quantos buscam a verdade e elevação do homem (ibid., 43).

5. Estas atitudes comportam um profundo empenho e uma grande capacidade de esforço e coragem.

Abre-se diante dos olhos do cristão a necessidade de mudar tantas coisas que são inadequadas ou injustas e que requerem a transformação a partir de dentro e de fora.

Há, porém, uma ilusão à qual se pode sucumbir: querer transformar a sociedade mudando apenas as estruturas externas ou buscando unicamente a satisfação das necessidades materiais do homem. E, no entanto, deve-se começar pela transformação de si mesmo; por se renovar moralmente; por transformar a partir de dentro, imitando a Cristo; por destruir as raízes do egoísmo e do pecado que se aninham em cada coração. Pessoas transformadas, colaboram eficazmente para transformar a sociedade.

6. Para viver nessa atitude cristã, o filho da Igreja, que sente a própria debilidade e pecado, necessita de vim constante empenho de conversão e de retorno às fontes ideais que inspiram a sua conduta. Necessita de um constante retorno à sua consciência e a Cristo.

Na sua fé há-de encontrar a força e dinamismo para se corrigir e se confirmar cada dia no bem. Sem se abandonar a essa passividade resignada que serpeia em tantos espíritos.

Um empenho de conversão que há-de ser pessoal e também comunitário. Capaz de orientar sempre a uma fidelidade maior à própria condição cristã e a superar, em metas mais elevadas, os desenganos ou erros do passado. Sem se deixar paralisar por eles, num inútil imobilismo ou sentimento de culpabilidade.

O desengano e o pecado aninham infelizmente em cada homem, em cada sector humano ou organismo composto por homens, na Igreja e fora dela.

Mas Deus ajuda-nos a renovar-nos constantemente na sua graça e amor. A Palavra revelada, o exemplo de Cristo, a graça dos sacramentos são os nossos caminhos de superação através da conversão.

7. Estas atitudes cristãs necessitam de critérios e guias concretos que as orientam de modo seguro, evitando possíveis desvios.

Quereis um critério seguro, concreto, sistemático, que vos oriente no momento presente? Segui a voz do Magistério e sede fiéis ao Concilio do nosso tempo: o Vaticano II.

Sem reticências, temores ou resistências por uma parte. Sem interpretações arbitrárias ou confusões do ensinamento objectivo com as próprias ideias, por outra. Parta daí o caminho da necessária unidade querida por Cristo.

Essa correcta aplicação dos ensinamentos conciliares constitui, como eu disse em diversas ocasiões, um dos objectivos principais do meu Pontificado.

8. Deste modo, queridos irmãos e irmãs, vivei e infundi nas realidades temporais a seiva da fé de Cristo, conscientes de que essa fé não destrói nada autenticamente bom, mas antes o reforça, o purifica e o eleva.

Demonstrai esse espirito na atenção prestada aos problemas cruciais. No âmbito da família, vivendo e defendendo a indissolubilidade e os demais valores do matrimónio, promovendo o respeito à vida toda desde o momento da concepção. No mundo da cultura, da educação e do ensino, escolhendo para os vossos filhos um ensinamento em que esteja presente o pão da fé cristã.

Sede também fortes e generosos no momento de contribuir para que desapareçam as injustiças e as discriminações sociais e económicas; no momento de participar num trabalho positivo de incremento e justa distribuição dos bens. Esforçai-vos por que as leis e costumes não descuidem o sentido transcendente do homem nem os aspectos morais da vida.

9. No momento culminante da Missa faz-se presente no altar o mistério do Calvário. Jesus mesmo renova a oblação daquele dia, a oblação que nos salva.

Junto da cruz esteve a Mãe de Jesus (cf. Jo 19, 25), participando da sua dor. Que Ela, a Mãe das Mercês, vos ajude com a sua intercessão a renovar nesta Santa Missa o vosso compromisso de cristãos. Confiantes no seu patrocínio, afastai passivismos e hesitações. E sede fiéis a vós mesmos, à Igreja e ao vosso tempo, com coerentes atitudes cristãs. Assim seja.

Que Deus vos abençoe!

 



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