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VIAGEM APOSTÓLICA À ESPANHA
31 DE OUTUBRO - 9 DE NOVEMBRO DE 1982

SANTA MISSA DO PEREGRINO

HOMILIA DO PAPA JOÃO PAULO II

Santiago de Compostela, 9 de Novembro de 1982

 

Queridos Irmãos no Episcopado
Amados irmãos e irmãs

1. Chego hoje à última etapa da minha viagem por terras da Espanha, precisamente ao lugar que os antigos chamavam "Finis terrae" e que agora é uma janela aberta para as novas terras, também cristãs, que se encontram mais além do Atlântico.

Passei já por diversas Igrejas locais, disseminadas pela esplêndida geografia deste querido país. Visitei também antigos santuários, e neste momento encontro-me perto de um dos lugares sagrados mais célebres na história, famoso no mundo inteiro: a catedral-basílica que encerra o túmulo de São Tiago, o Apóstolo que — segundo a tradição — foi o evangelizador da Espanha.

Esta linda cidade, Compostela, foi durante séculos a meta de um caminho traçado sobre a terra da Europa pelos passos dos peregrinos que, para não se extraviar olhavam para as estrelas do firmamento. Peregrino sou também eu. Peregrino-mensageiro que quer percorrer o mundo, para cumprir o mandato conferido por Cristo aos Apóstolos, quando os enviou a evangelizar todos os homens e todos os povos. Peregrino trazido à Espanha por Teresa de Jesus admirei os frutos da obra evangelizadora que tantos milhares de discípulos de Cristo realizaram ao longo de vinte séculos de história cristã. Peregrino que percorri as abençoadas terras hispânicas, semeando a mãos cheias a palavra do Evangelho, a fé e a esperança.

Agora estou convosco, queridos irmãos e irmãs, vindos de todas as dioceses da Galiza e de tantas partes da Espanha. Nesta Missa do peregrino, o Bispo de Roma saúda todos vós com afecto eclesial: os vossos Prelados e todos os participantes. Alegra-me ver-vos tão numerosos e saber que durante todo o Ano Compostelano, diversos milhões de peregrinos — mais que nos precedentes Anos Santos — vieram a Santiago em busca de perdão e de encontro com Deus.

Vamos celebrar a Eucaristia: o ápice e centro da nossa vida cristã, a meta à qual nos leva o caminho da penitência, da conversão e da incessante busca do Senhor, atitude própria do cristão, que sempre deve estar a caminho para Ele.

2. Depositada no mausoléu da vossa catedral, conservais a memória de um amigo de Jesus, de um dos Apóstolos predilectos do Senhor, o primeiro dos Apóstolos que com o seu sangue deu testemunho do Evangelho: São Tiago Maior, o filho de Zebedeu.

Os representantes do Sinédrio pretenderam impor a lei do silêncio a Pedro e aos Apóstolos que "com grande poder davam testemunho da Ressurreição do Senhor Jesus, gozando todos de grande simpatia" (Act 4, 33); "proibimo-vos formalmente — disseram eles — de ensinardes neste nome. Enchestes Jerusalém com a vossa doutrina e quereis fazer recair sobre nós o sangue desse homem" (Act 5, 28).

Mas Pedro e os Apóstolos responderam: "Importa mais obedecer a Deus do que aos homens. O Deus dos nossos pais ressuscitou Jesus, a Quem matastes suspendendo-O num madeiro. Foi a Ele que Deus elevou, com a Sua direita, como Chefe e Salvador, a fim de conceder a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados. E nós somos testemunhas destas coisas, juntamente com o Espírito Santo, que Deus tem concedido àqueles que Lhe obedecem" (Act 5, 29-32).

A missão da Igreja começou a realizar-se precisamente graças ao facto de que os Apóstolos, cheios do Espírito Santo recebido no Cenáculo no dia do Pentecostes, obedeceram a Deus antes do que aos homens.

Esta obediência pagaram-na com o sofrimento, com o sangue, com a morte. A fúria dos chefes do Sinédrio de Jerusalém foi manifestada com uma inflexível decisão, a que levou São Tiago Maior ao martírio, quando Herodes — como nos dizem os Actos dos Apóstolos — "maltratou alguns membros da Igreja. Mandou matar à espada Tiago, irmão de João" (Act 12, 1).

Ele foi o primeiro dos Apóstolos que sofreu o martírio. O Apóstolo que desde há séculos é venerado por toda a Espanha, a Europa e a Igreja inteira, aqui em Compostela.

3. São Tiago era irmão de João Evangelista. E estes foram os dois discípulos aos quais — num dos diálogos mais impressionantes registados pelo Evangelho — Jesus fez aquela famosa pergunta: "Podeis beber o cálice que Eu vou beber?". E eles responderam: "Podemos".

Era a palavra da disponibilidade, da coragem; uma atitude muito própria dos jovens, porém não só deles, mas de todos os cristãos e em particular dos que aceitam ser apóstolos do Evangelho. A generosa resposta dos dois discípulos foi aceita por Jesus. Disse-lhes Ele: "Bebereis o Meu cálice" (Mt 20, 23).

Estas palavras cumpriram-se em São Tiago filho de Zebedeu que com o seu sangue deu em Jerusalém testemunho da ressurreição de Cristo. Jesus fizera a pergunta sobre o cálice que haviam de beber os dois irmãos, quando a mãe deles, segundo lemos no Evangelho, se aproximou do Mestre a fim de Lhe pedir um lugar de especial categoria para ambos no Reino. Mas Cristo, depois de ter constatado a disponibilidade deles a beber o cálice, disse-lhes: "Bebereis o Meu cálice, mas o sentar-se à Minha direita ou à Minha esquerda não Me pertence a Mim concedê-lo; é para aqueles para quem Meu Pai o tem reservado" (Mt 20, 23).

A disputa para conseguir o primeiro lugar no futuro Reino de Cristo, que os seus discípulos imaginavam de um modo muito humano, suscitou a indignação dos outros Apóstolos. Foi então que Jesus aproveitou a ocasião para explicar a todos que a vocação ao seu Reino não é uma vocação ao poder mas ao serviço, "assim como o Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar a Sua vida pelo resgate de muitos" (Mt 20, 28).

Na Igreja, a evangelização, o apostolado, o ministério, o sacerdócio, o episcopado, o papado, são serviço.

O Concílio Vaticano II, sob cuja luz caminha o Povo de Deus nesta recta final do século XX, explicou-nos magnificamente, em vários dos seus documentos, como se serve, como se trabalha e como se sofre pela causa do Evangelho (cf. Lumen gentium, 18, 20; Christus Dominus, 15). Trata-se de servir o homem do nosso tempo como o serviu Cristo, como o serviram os Apóstolos. São Tiago Maior cumpriu a sua vocação de serviço no reino instaurado pelo Senhor, dando, como o Divino Mestre, "a vida pelo resgate de muitos".

4. Aqui, em Compostela, temos o testemunho dele. Um testemunho de fé que, ao longo dos séculos, inteiras gerações de peregrinos quiseram como "tocar" com as suas próprias mãos ou "beijar" com os seus lábios, vindo para isto à catedral de Santiago dos países europeus e do Oriente. Por sua parte, os Papas deram impulso a este peregrinar, que também tinha como metas Roma e Jerusalém.

O sentido, o estilo peregrinante é algo profundamente enraizado na visão cristã da vida e da Igreja (cf. Lumen gentium, 9). O caminho de São Tiago criou uma vigorosa corrente espiritual e cultural de fecundo intercâmbio entre os povos da Europa. Mas o que realmente buscavam os peregrinos, com a sua atitude humilde e penitente, era esse testemunho de fé ao qual me referi antes: a fé cristã que as pedras compostelanas, com as quais está construída a basílica do Santo, parecem verter. Essa fé cristã e católica que constitui a identidade do povo espanhol.

Ao término da minha visita pastoral à Espanha, aqui, junto do santuário do Apóstolo São Tiago, convido-vos a reflectir sobre a nossa fé, num esforço por estardes de novo ligados às origens apostólicas da vossa tradição cristã. De facto, a Igreja de Cristo, nascida n'Ele, cresce e matura para Cristo mediante a fé transmitida pelos Apóstolos e os seus sucessores. E a partir dessa fé há-de enfrentar as novas situações, problemas e objectivos de hoje. Vivendo a contemporaneidade eclesial em atitude de conversão, em serviço à evangelização, oferecendo a todos o diálogo da salvação, para se consolidar cada vez mais na verdade e no amor.

5. A fé é um tesouro que "trazemos em vasos de barro, para que tão excelso poder se reconheça vir de Deus e não de nós" (2 Cor 4, 7).

A fé da Igreja tem a sua origem e fundamento na mensagem de Jesus, difundida pelos Apóstolos por todo o mundo. Pela fé, que se manifesta como anúncio, testemunho e doutrina, é transmitida sem interrupção histórica a revelação de Deus, em Jesus Cristo, aos homens.

Os Apóstolos, pregando o Evangelho, estabeleceram com os homens de todos os povos um incessante diálogo que parece ressoar com especiais acentos aqui, junto do "testemunho" do Apóstolo São Tiago e do seu martírio. Deste incessante diálogo fala-nos a carta aos coríntios na passagem que lemos hoje durante a proclamação da Palavra.

Disse São Paulo e parece dizê-lo aqui em Santiago: "Trazemos sempre no nosso corpo os traços da morte de Jesus, para que também a vida de Jesus se manifeste no nosso corpo. Estamos ainda vivos, somos a toda a hora entregues à morte por amor de Jesus, para que a vida de Jesus se manifeste também na nossa carne mortal" (2 Cor 4, 10-12).

Os peregrinos parecem responder: "Acreditei e por isso falei... sabendo que Aquele que ressuscitou Jesus, também com Ele nos há-de ressuscitar e nos fará aparecer diante d'Ele convosco... para que a graça se multiplique nesse grande número e neles faça crescer o reconhecimento para a glória de Deus" (2 Cor 4 13-15).

Deste modo perdura em Compostela o testemunho apostólico e realiza-se o diálogo das gerações mediante o qual cresce a fé, a fé autêntica da Igreja, a fé em Jesus Cristo, Filho de Deus feito homem, morto e ressuscitado para nos oferecer a salvação. Ele, rico em misericórdia, é o Redentor do homem.

Uma fé que se traduz num estilo de vida segundo o Evangelho, ou seja, um estilo de vida que reflecte as bem-aventuranças, que se manifeste no amor como chave da existência humana e que revigore os valores da pessoa, para a comprometer na solução dos problemas humanos do nosso tempo.

6. É a fé dos peregrinos que vinham e continuam a vir aqui de toda a Europa e de mais além das suas fronteiras. A fé das gerações passadas que "ontem" vieram a Compostela, e a da geração actual que continua a vir também "hoje". Com esta fé se constrói a Igreja, una, santa, católica e apostólica.

Assim pois, junto do Apóstolo São Tiago, é construída em nós a Igreja do Deus vivo. Esta Igreja professa a sua fé em Deus, anuncia a Deus, adora a Deus. Assim proclamamos no salmo responsorial da liturgia que estamos a celebrar:

"Deus tenha piedade de nós e nos abençoe, / e faça resplandecer sobre nós a luz da Sua face, / para que se conheçam na terra os Vossos caminhos, / e entre as nações a Vossa obra salvadora. / Louvem-Vos, ó Senhor, os povos, / todos os povos Vos dêem graças" (Sl 66/67 2-4).

A minha peregrinação por terras da Espanha termina aqui, em Santiago de Compostela. Passei pela vossa pátria pregando a Cristo Crucificado e Ressuscitado, difundindo o seu Evangelho, actuando como "testemunha de esperança", e encontrei por todas as partes abertura generosa, correspondência entusiasta, afecto sincero, hospitalidade afável, capacidade criadora e anseios de renovação cristã.

Por isso, neste momento, desejo proclamar e celebrar com as palavras do Salmista a glória e o louvor do Deus vivo. Pai, Filho e Espírito Santo.

Seja para a "maior glória de Deus" — ad maiorem Dei gloriam — todo este serviço do Bispo de Roma peregrino. Com tal espírito o iniciei e peço-vos que assim o recebais.

Neste lugar de Compostela, meta para a qual peregrinaram durante séculos tantos homens e povos, desejo, juntamente convosco, filhos e filhas da Espanha católica, convidar todas as nações da Europa e do mundo — os povos e homens de toda a terra — à adoração e ao louvor do Deus vivo, Pai, Filho e Espirito Santo.

"Louvem-Vos, 6 Senhor, os povos, / todos os povos Vos dêem graças" (Sl 66/67, 6).

Amém.

 



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