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DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
 NO CENTENÁRIO DO NASCIMENTO
DO CARDEAL AUGUSTIN BEA

Sábado, 19 de Dezembro de 1981

 

Eminências
Excelências
Senhores

Estou reconhecido pela vossa visita e pela ocasião que me é dada de tomar conhecimento dos importantes trabalhos que vos reuniram aqui e têm em vista pôr em realce a contribuição que o Cardeal Augustin Bea trouxe às grandes realizações do Concílio Vaticano II. Trata-se de um acto de fidelidade à verdade histórica, de uma homenagem de gratidão a Deus por aquilo que Ele nos deu através de quem foi Seu grande servidor, de um estimulante para nos ajudar a desenvolver cada vez mais os germes fecundos nascidos do Concílio, mas que têm necessidade da nossa colaboração para que possam dar os frutos que nele se encontram em potência.

Penso, entre outros, em três documentos que foram especialmente caros ao Cardeal Bea e não cessaram de inspirar numerosas iniciativas da Igreja, graças à intervenção do Secretariado para a Unidade dos Cristãos e de outros organismos da Santa Sé; quero falar do decreto sobre o ecumenismo, da declaração Nostra aetate sobre as relações da Igreja com as religiões não cristãs — a começar pelo judaísmo —, e da declaração sobre a liberdade religiosa. Tenho muitas vezes ocasião de esclarecer o compromisso da Igreja nestas três direcções; hoje, detenho-me preferentemente em considerar como a contribuição do Cardeal Bea para a acção do Concílio esclarece e estimula o nosso compromisso para que a árvore plantada pelo Concílio no solo da Igreja cresça e se desenvolva cada vez mais. Com efeito, a vida do Cardeal dá-nos a este propósito várias indicações importantes.

1. A primeira indicação diz respeito ao espírito que alimentava a sua acção ecuménica. Disso encontramos o testemunho explícito nas suas notas espirituais. Em 1960, meditando sobre a missão dos apóstolos apoiados por Cristo, escreve: "Considero a tarefa que me é confiada como a 'missão' essencial de que o Salvador agora me encarrega. Quero-a desempenhar com a mais completa dedicação... É preciso, primeiro que tudo, manifestar aos meus irmãos o meu amor: nas relações, nas conversas, na correspondência e nas negociações. Os irmãos separados devem reconhecer que actuo unicamente por amor a Cristo... A obra deverá fazer-se com espírito interior e no espírito de fortaleza, portanto com uma força sobrenatural (1 Tess 1, 5; cf. 1 Cor 4, 20). Cada um deverá reconhecer que não há nisso qualquer desejo de poder, interesse terrestre e puro activismo, nada de rotina, mas o verdadeiro espírito de Cristo" (Augustin Bea, Ma vie pour mes frères, Paris 1971, p. 109).

Contudo, o Cardeal Bea não se iludia sobre as dificuldades da empresa. Nas suas notas espirituais do retiro de 1962, lemos a este propósito: "Quanto mais uma alma está perto do Senhor, mais também vale para ela a alusão à cruz. Ela vale portanto também para mim, sobretudo na minha tarefa particular que não se pode exercer sem muitas fadigas, sem reservas e mal-entendidos. É preciso que eu vá buscar a minha coragem e a minha força à 'transfiguração', nesta transfiguração que se opera em mim pela oração" (l.c., pp. 179 ss.).

2. Uma segunda indicação que nos vem do Cardeal Bea é o seu profundo conhecimento da Palavra de Deus contida no Antigo e no Novo Testamento, e a sua dedicação, não só para a aprofundar, mas para a comunicar e a fazer extensamente penetrar na Igreja. Foi a esta tarefa que ele consagrou uma vida inteira de sábio, através das publicações e sobretudo através do ensino. Durante decénios, fez que partilhassem milhares de futuros professores da Sagrada Escritura, disseminados em seguida por toda a Igreja, as riquezas propostas pelo Pontifício Instituto Bíblico. Esta tarefa realizou-se tanto mais quanto ele dirigiu mesmo este Instituto durante 19 anos e teve por isso responsabilidade particular no ensino, nas publicações, nas investigações, e de modo especial nas escavações arqueológicas que o Instituto efectuou na Palestina. A isto é preciso juntar a colaboração dedicada e eficaz nos trabalhos da Comissão Bíblica. Como deixar de notar, em seguida, a sua acção de Padre conciliar? Nas suas numerosas intervenções, insistia na necessidade de fazer que aparecessem claramente, nos textos conciliares, as bases bíblicas da doutrina proposta. E quando desenvolvia a teologia do baptismo e as suas consequências para as relações entre cristãos separados entre si, colocava em realce o fundamento bíblico essencial dessa doutrina. De maneira mais geral, repetia sem cessar que a Sagrada Escritura constitui a herança e o tesouro comuns de todos os cristãos e por isso base essencial para nos reencontrarmos para além das divisões. Foi ainda esta convicção que o inspirou ao iniciar a colaboração com as "Sociedades bíblicas" para preparar "traduções ecuménicas" da Bíblia. Neste mesmo espírito, assumiu a tarefa delicada de apresentar ao Concílio a declaração Nostra aetate, pondo em vista as relações entre o povo eleito do Antigo Testamento e o do Novo.

3. Um terceiro testemunho precioso do Cardeal Bea diz respeito às suas ligações com a Igreja. Sentir assim a Igreja animada por Cristo acompanha com efeito todas as actividades agora mesmo evocadas, como o exprimem duas palavras tiradas das suas notas espirituais: "A Igreja não é portanto simplesmente uma piedosa associação, é Cristo que segue vivendo com todos os seus dons e as suas graças (cf. 1 Cor 12, 12.27)" (l.c., p. 211). Daí esta consequência: "O meu trabalho deve sempre proceder no cuidado de participação na vida da Igreja e na sua sorte. É ela que deve dar a forma" (l.c., p. 288 ss.). De facto, todo o seu trabalho no Instituto Bíblico era dirigido para serviço da Igreja que lho tinha confiado e de tantas Igrejas locais onde os seus alunos do Instituto continuariam a semear o que tinham aprendido. Mas foi chamado a servir a Igreja na Cúria e na pessoa mesma do Sucessor de Pedro. Todos sabem a confiança profunda que lhe reservaram sucessivamente — e cada um à sua maneira — os Papas Pio XII, João XXIII e Paulo VI, que tanto apreciaram os seus serviços qualificados. Baste citar o facto de ter sido chamado ao Cardinalato e ter sido nomeado primeiro Presidente do novo Secretariado para a Unidade dos Cristãos.

À Igreja trouxe ainda o seu trabalho de consultor dos Dicastérios da Cúria Romana, e em particular a sua colaboração com aquele que era na altura o Santo Ofício e do mesmo modo com a Congregação dos Ritos para a reforma litúrgica. Foi sempre para o serviço da Igreja que ele trabalhou, como primeiro Presidente, sustentando os inícios da Comissão para a Neovulgata, isto é a revisão da Vulgata latina, para a tornar fiel aos textos originais da Sagrada Escritura. Esta tarefa encontra-se já terminada.

4. A profundidade de tais ligações com a Igreja — ou "sentire cum Ecclesia" no sentido mais profundo da palavra — abria-o ao mesmo tempo às necessidades do mundo, fazendo-lhe observar e interpretar os sinais dos tempos, para compreender o que hoje o Espírito diz às Igrejas (cf. Apoc 2, 7). Assim a profunda união com Cristo por quem ele se sentia enviado, o estudo e a meditação da Palavra de Deus, o laço profundo com a Igreja, e a sua sensibilidade diante das necessidades espirituais do mundo, visavam em última análise um fim muito elevado: que a Igreja se tornasse cada vez mais como "o sacramento, isto é, ao mesmo tempo o sinal e o meio da união intima com Deus e da unidade de todo o género humano" (Lumen gentium, 1). Noutros termos, tudo se colocava na perspectiva que o Senhor nos abriu na profecia de Sofonias: "Então, darei aos povos lábios puros, para que todos invoquem o nome do Senhor e O sirvam de comum acordo" (3, 9). O meu desejo é que os vossos trabalhos possam fornecer contributo precioso para a realização deste desígnio divino, e é para isso que invoco, sobre eles e sobre vós, a bênção do Deus todo-poderoso, nosso Pai.

 

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