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VISITA PASTORAL À REGIÃO DA LOMBARDIA
 20-22 DE MAIO DE 1983

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
 AOS TRABALHADORES EM SESTO SAN GIOVANNI

Sábado, 21 de Maio de 1983

 

1. O encontro convosco, caríssimos homens e mulheres do mundo do trabalho, é-me particularmente caro porque o vosso é um mundo que sinto tão de perto, também pela directa experiência que dele tive a seu tempo: eu mesmo vivi a vida que estais a viver, a sua canseira, as suas dificuldades, como também as suas alegrias e esperanças. Sei o que significa entrar numa fábrica e ali estar todas as horas úteis do dia, todos os dias da semana, todas as semanas do ano: experimentei isto na minha carne; não o aprendi nos livros.

E é lição que não foi esquecida por mim, embora a Providência me tenha chamado depois a tarefas diversas. É por isto que aproveito as ocasiões para me encontrar com os trabalhadores; convosco, caríssimos Irmãos e Irmãs, que sois os protagonistas daquele fundamental sector da vida social que se qualifica com o nome de "mundo do trabalho". Impelem-me a vós o antigo hábito de experiência e ainda a actual responsabilidade de Sucessor de Pedro. Também vós, com efeito, sois parte daquele rebanho, que em nome de Cristo devo guiar, pelos Seus caminhos, para a vida verdadeira.

Por todas estas razões sinto que posso falar-vos ao mesmo tempo como irmão e como Papa.

2. Saúdo cordialmente todos vós; e agradeço de coração ao Presidente da Câmara Municipal de Sesto San Giovanni e aos trabalhadores que se fizeram intérpretes dos comuns sentimentos. Desejaria que compreendesseis o afecto com que me sinto junto de cada um, compartilhando as suas ânsias e os seus problemas, os seus desejos e as suas preocupações.

No início deste momento de solidariedade convosco, nesta Cidade que ocupa um lugar central no mundo do trabalho, desejaria pedir-vos que me consentísseis render homenagem, antes de mais a Cristo Senhor, que, vindo à terra como nosso irmão, quis fazer a experiência do trabalho manual. Cristo está vivo e presente também hoje entre nós no sacramento da Eucaristia. Como sabeis, a Igreja italiana inteira estes dias volta os olhares para a vossa Milão, onde se celebra o Congresso Eucarístico Nacional. Inumeráveis corações de homens e de mulheres voltam-se com fé renovada para a cândida Hóstia do altar, reconhecendo nela a presença do Criador do universo e do Senhor da história.

Que estupendo mistério! Para chegar a Cristo não devemos remontar ao tempo até atingir os dias da Sua vida terrena, não devemos deslocar-nos no espaço até atravessar os confins da Palestina. Basta entrarmos numa igreja, aproximarmo-nos de um tabernáculo: ali O encontramos; podemos falar-Lhe; podemos ouvir as suas inspirações; podemos adorá-1'O. As minhas primeiras palavras, neste nosso encontro, querem ser convite a unir-nos a todos os outros fiéis que se ajoelham diante da Eucaristia e A adoram.

Ao falar da Eucaristia, neste momento e neste ambiente, como não pôr em relevo um aspecto que de modo particular vos une, trabalhadores e trabalhadoras, a este Sacramento? Sois vós, com efeito, que preparais por assim dizer, a matéria da Eucaristia. Não são porventura os trabalhadores dos campos que cultivaram a videira e o trigo? Não são os trabalhadores da indústria que prepararam os vários instrumentos de que o homem se serve para transformar os cachos de uva em vinho e as espigas em pão? A liturgia da Igreja reconhece-o de modo claro quando, na oferta do pão e do vinho na Missa, repete duas vezes: "fruto da terra e do trabalho do homem". Os trabalhadores podem com justo orgulho dizer que a hóstia o vinho consagrados são, por uma parte, também obra sua.

3. A este motivo de orgulho de ordem especificamente cristã, acrescentam-se outros que se situam no plano mais imediatamente humano. São os motivos derivados da consciência do insubstituível papel que o trabalho tem quer na maturação da pessoa quer na edificação da sociedade. De facto, assim como a Nação haure o próprio bem-estar da actividade dos cidadãos, assim também cada um dos trabalhadores encontra na quotidiana dedicação às suas tarefas uma eficaz escola de seriedade profissional, de pessoal responsabilidade, de corajoso apego aos valores fundamentais da convivência civil.

Como não recordar, a este propósito, o alto testemunho de consciência cívica, dado há quarenta anos pelos trabalhadores desta cidade, em Dezembro de 1943, que viu os operários de todos os estabelecimentos cruzarem os braços, como testemunho de protesto contra as prevaricações da ditadura?

O trabalho é escola de humanidade, e o homem, quando aprende a ser ele mesmo, aprende também a defender os valores nos quais acredita.

4. Esta constatação, que a experiência de quanto acontece em tantas partes do mundo confirma, não exaure todos os aspectos daquele complexo fenómeno que é o trabalho humano. Ao lado dos valores positivos, não faltam nele elementos também relevantes, que parecem desmentir a optimista afirmação há pouco proposta.

O trabalho é monótono e cansativo. Não só: ele parece comportar uma mortificação das exigências conexas com a espiritualidade do homem. O trabalho, especialmente o do operário, parece exigir uma sujeição do ser humano à sua obra: a máquina e a cada vez mais sofisticada organização técnica da produção impõem leis objectivas às prestações dos indivíduos, e muitas vezes impedem a actuação da sua pessoal capacidade inventiva e expressiva.

Não qualitativamente diverso do trabalho do operário é, aliás, o trabalho do empregado e do encarregado de tarefas administrativas ou organizativas: a inovação tecnológica é, hoje em particular, a cibernética, produzem muitas vezes o anulamento de capacidades profissionais antes adquiridas e a necessidade de retomar desde o início a própria qualificação profissional em obediência às mudadas características da organização do trabalho.

Permanece, além disso, a lei geral da separação do trabalhador da própria obra: o homem que trabalha não se dedica imediatamente a uma actividade dirigida para a própria edificação moral e espiritual, mas presta um serviço voltado para o bem comum: um serviço cuja efectiva vantagem para o bem comum é todavia condicionada, e também ameaçada, pela complexa rede de todas as relações económicas. Também esta circunstância concorre para alimentar uma impressão de que o trabalhador é alheio em relação à própria obra.

Não deve, enfim, ser esquecido o facto que as relações económicas são interpostas pelo dinheiro: o reconhecimento objectivo do concurso de cada, um para o bem comum concretiza-se num poder aquisitivo. As relações económicas tornam-se, sob este aspecto, também relações de poder, e portanto potencialmente conflituais, nas quais cada uma das categorias tende com facilidade a divisar e reinvidicar só os próprios direitos ou, mais simplesmente, os próprios interesses.

5. Por todos estes motivos o trabalho apresenta uma realidade bastante menos positiva e livre de quanto uma sua consideração superficial poderia deixar supor. Além disso, é preciso considerar um outro aspecto complexivo do trabalho, também ele verdadeiro e inegável, é no entanto muitas vezes esquecido. O trabalho é também um documento da perfeição humana. Perfeição do indivíduo, que precisa do concurso de todos os outros para realizar as exigências fundamentais da própria vida. Mas também perfeição do empreendimento colectivo dos homens, o qual não pode nunca realizar o objectivo de criar tudo o que é indispensável à vida de cada um. O homem, de facto, não vive só do que as suas mãos podem produzir. Ele traz em si expectativas e esperanças, que nenhuma realidade terrena jamais poderá satisfazer de maneira completa. Com efeito, esta é a verdade: o sentido pleno da vida o homem encontra-o só para além e acima da vida mesma. Encontra-o em Deus que, em Cristo, veio ao encontro dele para o salvar.

Não se quer dizer com isto que não deva ser promovida, com todos os meios razoáveis, uma cada vez mais plena libertação do homem dos condicionamentos que ainda hoje de várias formas o oprimem. O que se afirma é o fatal "carácter de incompleto" de todo o semelhante esforço, se não se abre contemporaneamente à dimensão transcendente da fé.

A liberdade e a esperança do homem, na sua participação como trabalhador na obra colectiva, são garantidas apenas se ele encontra repouso na consideração que acredita na obra de Deus. Não está aqui, talvez, a profunda razão do preceito bíblico que impõe ao homem suspender semanalmente o próprio trabalho, para entrar no repouso de Deus e oferecer-Lhe, com a participação na Eucaristia, "os frutos da terra e do próprio trabalho"? Mediante tal pausa o homem poderá com mais facilidade sintonizar-se com o desígnio do Senhor e encontrar na reflexão sobre a Sua obra criadora, a única completada, o fundamento de uma "esperança que não engana" (cf. Rom. 5, 5). Há de facto uma explícita promessa de Deus a este respeito: "Feliz o homem que teme o Senhor, que anda nos seus caminhos"; ele só poderá "viver do trabalho das suas mãos", porque aquele trabalho será acompanhado e tornado fecundo pela bênção de Deus (cf. Sl. 127/128 e Gén. 1, 28).

6. Quanta necessidade das bênçãos de Deus existe no mundo de hoje, sobre o qual pesam tantas e tão graves ameaças! De entre as situações de mal-estar que atormentam a humanidade actual, quero aqui apenas recordar uma, à qual estais de modo particular expostos: o desemprego. Bem sei quanto este problema angustia o mundo do trabalho, comprimido nestes anos entre as espirais de uma crise económica que ameaça todas as tentativas de recuperação.

Uma das razões da visita de hoje é precisamente esta: testemunhar a minha participação nos sofrimentos de quem perdeu o emprego e na ansiedade de quem vê ameaçada a sua segurança. "Problema fundamental" é o desemprego, como escrevi na Encíclica Laborem exercens, sobretudo se se trata dos jovens "que, depois de se terem preparado por meio de uma formação cultural, técnica e profissional apropriada, não conseguem um emprego e, com mágoa, vêem frustradas a sua vontade, sincera de trabalhar e a sua disponibilidade para assumir a própria responsabilidade no desenvolvimento económico e social da comunidade"(n. 18).

Trata-se, sem dúvida, de um problema complexo, em que incidem múltiplos factores conexos com os novos desenvolvimentos nas condições tecnológicas, económicas e políticas, como eu reconhecia no início, do mencionado Documento (cf. n.1). Entre as suas causas, todavia; não faltam lentidões culpáveis, carências, de solidariedade, condenáveis egoísmos. Por sua parte a Igreja não se cansa de evocar "a dignidade e os direitos dos homens do trabalho e de estigmatizar as situações em que são violados" (ibid ).

Aproveito, portanto, também esta circunstância para renovar um premente apelo a todas as pessoas, que têm poder de iniciativa económica e política, para que unam os seus esforços numa acção coordenada e responsável que, no quadro de sacrifícios. distribuídos de modo equitativo entre os cidadãos, abra novas perspectivas neste fundamental sector da vida social. Do concorde empenho de todos poderá, de facto, surgir aquele progresso na justiça e no bem-estar que constitui a comum aspiração das várias componentes do conjunto social.

Com votos por que estas expectativas possam ser finalmente satisfeitas, elevo a minha oração ao Pai de todos os homens e de todos os povos para que ilumine cada uma, das pessoas de boa vontade e oriente o seu empenho para a meta de um cada vez mais amadurecido respeito da dignidade da pessoa, sujeito e fim de toda a actividade de trabalho, para a edificação de uma sociedade justa, livre e em paz.

 


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