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DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
 POR OCASIÃO DO CENTENÁRIO
DA ENCÍCLICA «PROVIDENTISSIMUS DEUS»
E CINQUENTENÁRIO DA «DIVINO AFFLANTE SPIRITU»

Sala Clementina, 23 de Abril de 1993

 

Senhores Cardeais,
Senhores Chefes de Missões diplomáticas,
Senhores Membros da Pontifícia Comissão Bíblica,
Senhores Professores do Pontifício Instituto Bíblico!

1. Agradeço de todo o coração ao Senhor Cardeal Ratzinger os sentimentos que acaba de exprimir, ao apresentar-me o documento elaborado pela Pontifícia Comissão Bíblica sobre a interpretação da Bíblia na Igreja. É com alegria que recebo este documento, fruto de um trabalho colegial empreendido por sua iniciativa, Senhor Cardeal, e prosseguido com perseverança durante diversos anos. Ele vem ao encontro de uma preocupação que me está a peito, porque a interpretação da Sagrada Escritura é de importância capital para a fé cristã e para a vida da Igreja. « Com efeito, nos livros Sagrados — como justamente no-lo recordou o Concílio —, o Pai que está nos céus vem amorosamente ao encontro dos Seus filhos e conversa com eles; e é tanta a força e a virtude que se encerra na palavra de Deus, que é, na verdade, apoio e vigor para a Igreja, e, para seus filhos, firmeza da fé, alimento da alma, fonte pura e perene da vida espiritual » (Dei Verbum, 21). O modo de interpretar os textos bíblicos para os homens e as mulheres de hoje tem consequências directas sobre a relação pessoal e comunitária dos mesmos com Deus, e está também estreitamente ligado à missão da Igreja. Trata-se de um problema vital, que merecia toda a vossa atenção.

2. O vosso trabalho completa-se num momento muito oportuno, porque me dá o ensejo de comemorar convosco dois aniversários ricos de significado: o centenário da Encíclica Providentissimus Deus, e o cinquentenário da Encíclica Divino afflante Spiritu, ambas dedicadas às questões bíblicas. A 18 de Novembro de 1893, o Papa Leão XIII, muito atento aos problemas intelectuais, publicava a sua Encíclica sobre os estudos da Sagrada Escritura, com a finalidade, escrevia ele, « de os estimular e de os recomendar » e também de os « orientar duma maneira que corresponda melhor às necessidades da época » (Enchiridion Biblicum, 82). Cinquenta anos mais tarde, o Papa Pio XII dava aos exegetas católicos, na sua Encíclica Divino afflante Spiritu, novos encorajamentos e novas directrizes. Entretanto, o Magistério pontifício tinha manifestado a sua constante atenção aos problemas relativos à Sagrada Escritura com numerosas intervenções. Em 1902, Leão XIII criava a Comissão Bíblica; em 1909, Pio X fundava o Instituto Bíblico. Em 1920, Bento XV celebrava o milésimo quingentésimo aniversário da morte de São Jerónimo, com uma Encíclica sobre a interpretação da Bíblia. O vivo impulso dado assim aos estudos bíblicos, encontrou a sua plena confirmação no Concílio Vaticano II, de modo que a Igreja inteira deles se beneficiou. A Constituição dogmática Dei Verbum esclarece o trabalho dos exegetas católicos e convida os pastores e os fiéis a nutrirem-se mais assiduamente da palavra de Deus contida nas Escrituras.

Hoje, desejo pôr em ressalto alguns aspectos do ensinamento destas duas Encíclicas e a validade perene da sua orientação através das circunstâncias mutáveis, a fim de aproveitar melhor o seu contributo.

I. Da « Providentissimus Deus » à « Divino afflante Spiritu »

3. Em primeiro lugar, nota-se, entre estes dois documentos, uma diferença importante. Trata-se da parte polémica — ou, mais exactamente, apologética — das duas Encíclicas. Com efeito, tanto uma como a outra manifestam a preocupação de responder aos ataques contra a interpretação católica da Bíblia, mas estes ataques não tinham o mesmo objectivo. A Providentissimus Deus, por um lado, quer sobretudo proteger a interpretação católica da Bíblia contra os ataques da ciência racionalista; por outro lado, a Divino afflante Spiritu preocupa-se mais com defender a interpretação católica, contra os ataques que se opõem à utilização da ciência, por parte dos exegetas, e que querem impor uma interpretação não cientifica, chamada « espiritual » das Sagradas Escrituras.

Esta mudança radical de perspectiva foi devida, obviamente, às circunstâncias. A Providentissimus Deus apareceu numa época marcada por polémicas virulentas contra a fé da Igreja. A exegese liberal trazia a estas polémicas um apoio importante, porque utilizava todos os recursos das ciências, desde a crítica textual até à geologia, passando pela filologia, pela crítica literária, pela história das religiões, pela arqueologia e ainda por outras disciplinas. Pelo contrário, a Divino afflante Spiritu foi publicada pouco tempo depois de uma polémica muito diferente, surgida sobretudo na Itália, contra o estudo científico da Bíblia. Um opúsculo anónimo tinha sido largamente difundido, para prevenir contra o que ele descrevia como « um gravíssimo perigo para a Igreja e para as almas: o sistema crítico-científico no estudo e na interpretação da Sagrada Escritura, os seus desvios funestos e as suas aberrações ».

4. Tanto num caso como no outro, a reacção do Magistério foi significativa, porque, em vez de se limitar a uma resposta puramente defensiva, entrou no âmago do problema e manifestou assim — notamo-lo de passagem — a fé da Igreja no mistério da Encarnação.

Contra as ofensivas da exegese liberal, que apresentava as suas alegações como conclusões fundadas sobre aquisições da ciência, ter-se-ia podido reagir lançando anátema sobre a utilização das ciências na interpretação da Bíblia, e ordenando aos exegetas católicos que se limitassem a uma explicação « espiritual » dos textos.

A Providentissimus Deus não envereda por este caminho. Pelo contrário, a Encíclica convida insistentemente os exegetas católicos a adquirirem uma verdadeira competência científica, de modo a superarem os seus adversários no terreno dos mesmos. « O primeiro » meio de defesa, diz ela, « encontra-se no estudo das línguas antigas do Oriente, bem como no exercício da crítica científica » (E.B., 118). A Igreja não tem medo da crítica científica. Ela só teme as opiniões preconcebidas, que têm a presunção de se fundar na ciência mas que, na realidade, fazem sair sub-repticiamente a ciência do seu domínio.

Cinquenta anos mais tarde, na Divino afflante Spiritu, o Papa Pio XII pode notar a fecundidade das directrizes dadas pela Providentissimus Deus: « Graças a um melhor conhecimento das línguas bíblicas e de tudo o que diz respeito ao Oriente, ... numerosas questões levantadas no tempo de Leão XIII contra a autenticidade, a antiguidade, a integridade e o valor histórico dos Livros Sagrados ... encontram-se hoje esclarecidas e resolvidas » (E.B., 546). O trabalho dos exegetas católicos, « que fizeram um uso correcto das armas intelectuais utilizadas pelos seus adversários » (n. 562), tinha dado frutos. E é precisamente por esta razão que a Divino afflante Spiritu se mostra menos preocupada do que a Providentissimus Deus com o combate contra as posições da exegese racionalista.

5. Mas tinha-se tornado necessário responder aos ataques provenientes dos partidários de uma exegese chamada « mística » (n. 552), que procuravam fazer condenar pelo Magistério os esforços da exegese científica. Como responde a Encíclica? Ela teria podido limitar-se a salientar a utilidade e mesmo a necessidade destes esforços para a defesa da fé, o que teria favorecido uma espécie de dicotomia entre a exegese científica, destinada ao uso externo, e a interpretação espiritual, reservada ao uso interno. Na Divino afflante Spiritu, Pio XII evitou deliberadamente enveredar por este caminho. Pelo contrário, ele reivindicou a estreita união das duas iniciativas, por um lado salientando o alcance « teológico » do sentido literal, metodologicamente definido (E.B., 251), por outro lado, afirmando que, para poder ser reconhecido como sentido de um texto bíblico, o sentido espiritual deve apresentar garantias de autenticidade. Uma simples inspiração subjectiva não é suficiente. Deve-se poder mostrar que se trata de um sentido « querido por Deus mesmo », de um significado espiritual « dado por Deus » ao texto inspirado (E.B., 552-553). A determinação do sentido espiritual é da competência, pois, também ela, do domínio da ciência exegética.

Verificamos assim que, apesar da grande diversidade das dificuldades a enfrentar, as duas Encíclicas se encontram perfeitamente no nível mais profundo. Elas rejeitam, tanto uma como a outra, a ruptura entre o humano e o divino, entre a investigação científica e o olhar da fé, entre o sentido literal e o sentido espiritual. Mostram-se, além disso, em plena harmonia com o mistério da Encarnação.

II. Harmonia entre a exegese católica e o Mistério da Encarnação

6. A estreita relação que une os textos bíblicos inspirados no mistério da Encarnação foi expressa pela Encíclica Divino afflante Spiritu nos termos seguintes: « Como o Verbo substancial de Deus se fez semelhante aos homens em tudo, excepto o pecado, assim também a palavra de Deus, expressa em língua humana, se assemelhou em tudo à linguagem humana, excluso o erro » (E.B., 559). Retomada quase literalmente pela Constituição conciliar Dei Verbum (n. 13), esta afirmação põe em luz um paralelismo rico de significado.

E verdade que o facto de as palavras de Deus terem sido postas por escrito, graças ao carisma da inspiração relativa à Sagrada Escritura, foi um primeiro passo para a Encarnação do Verbo de Deus. Estas palavras escritas constituíram, de facto, um meio estável de comunicação e de comunhão entre o povo eleito e o seu único Senhor. Por outro lado, é graças ao aspecto profético destas palavras que foi possível reconhecer o cumprimento do desígnio de Deus, quando « o Verbo Se fez homem e habitou entre nós » (Jo 1,14). Depois da glorificação celeste da humanidade do Verbo feito homem, é ainda graças a palavras escritas que a sua passagem entre nós permanece testificada de maneira estável. Unidos aos escritos inspirados da Primeira Aliança, os escritos inspirados da Nova Aliança constituem um meio verificável de comunicação e de comunhão entre o povo crente e Deus, Pai, Filho e Espírito Santo. Este meio não pode certamente ser separado do sopro de vida espiritual, que jorrou do Coração de Jesus crucificado e que se propaga graças aos sacramentos da Igreja. Ele tem, contudo, a sua consistência própria, precisamente a de um texto escrito, que merece crédito.

7. Por conseguinte, as duas Encíclicas solicitam os exegetas católicos a permanecerem em plena harmonia com o mistério da Encarnação, mistério de união do divino e do humano, numa existência histórica inteiramente determinada. A existência terrena de Jesus não se define apenas com lugares e datas do início do século I na Judeia e na Galileia, mas também com a sua radicação na longa história de um pequeno povo do antigo Próximo Oriente, com as suas fraquezas e as suas grandezas, com os seus homens de Deus e os seus pecadores, com a sua lenta evolução cultural e as suas transformações políticas, com as suas derrotas e as suas vitórias, com as suas aspirações à paz e ao reino de Deus. A Igreja de Cristo toma a sério o realismo da Encarnação e é por este motivo que ela atribui uma grande importância ao estudo « histórico-crítico » da Bíblia. Longe de a reprovar, como teriam querido os partidários da exegese « mística », os meus predecessores aprovaram-na vigorosamente. « Artis criticae disciplinam — escrevia Leão XIII —, quippe percipiendae penitus hagiographorum sententiae perutilem, Nobis vehementer probantibus, nostri (exegetae, scilicet, catholici) excolant » (Carta Apostólica Vigilantiae, para a fundação da Comissão Bíblica, 30 de Outubro de 1902: E.B., 142). A mesma « veemência » na aprovação, o mesmo advérbio (« vehementer ») se encontram na Divino afflante Spiritu a propósito das investigações de crítica textual (cf. E.B., 548).

8. A Divino afflante Spiritu, como se sabe, recomendou particularmente aos exegetas o estudo dos géneros literários utilizados nos Livros Sagrados, chegando a dizer que a exegese católica deve « adquirir a convicção de que esta parte da sua tarefa não pode ser negligenciada, sem grave dano para a exegese católica » (E.B., 560). Esta recomendação parte da solicitude de compreender o sentido dos textos com toda a exactidão e precisão possíveis e, portanto, no seu contexto cultural histórico. Uma ideia falsa de Deus e da Encarnação leva um certo número de cristãos a tomar uma orientação oposta. Eles têm a tendência a crer que, sendo Deus o Ser absoluto, cada uma das suas palavras tem um valor absoluto, independente de todos os condicionamentos da linguagem humana. Não há motivos, segundo eles, para estudar este: condicionamentos para fazer distinções que relativizariam o alcance das palavras. Mas isto é iludir-se e recusar, na realidade, os mistérios de inspiração relativa à Sagrada Escritura e da Encarnação aderindo a uma falsa noção do Absoluto. O Deus da Bíblia não um Ser absoluto que, destruindo tudo aquilo que toca, suprimiria todas as diferenças e todos os cambiantes. Ele é, pelo contrário, c Deus criador, que criou a admirável variedade dos seres « cada um segundo a sua espécie », como diz e repete a narração do Génesis (cf Gén, cap. 1). Longe de destruir as diferenças, Deus respeita-as e valoriza-as (cf 1 Cor 12,18.24.28). Quando se exprime em linguagem humana, Ele não dá a cada expressão um valor uniforme, mas utiliza-lhe os cambiantes possíveis com uma flexibilidade extrema, e aceita-lhe igualmente as limitações. É o que torna a tarefa dos exegetas tão complexa, tão necessária e tão apaixonante! Nenhum aspecto humano da linguagem pode ser negligenciado. Os progressos recentes das investigações linguísticas, literárias e hermenêuticas levaram a exegese bíblica a juntar, ao estudo dos géneros literários, muitos outros pontos de vista (retórica, narrativa, estruturalismo); outras ciências humanas, como a psicologia e a sociologia foram igualmente utilizadas. A tudo isto podem-se aplicar as recomendações dadas aos membros da Comissão Bíblica por Leão XIII: « Que eles não considerem alheio ao seu campo nada do que a investigação industriosa dos modernos tiver encontrado de novo; pelo contrário, que eles tenham o espírito alerta para adoptar sem demora o que cada momento traz de útil à exegese bíblica » (Vigilantiae: E.B., 140). O estudo dos condicionamentos humanos da palavra de Deus deve ser prosseguido com um interesse incessantemente renovado.

9. Contudo, este estudo não é suficiente. Para respeitar a coerência da fé da Igreja e da inspiração da Escritura, a exegese católica deve estar atenta a não se limitar aos aspectos humanos dos textos bíblicos. É preciso que também ajude o povo cristão a perceber mais nitidamente nestes textos a palavra de Deus, de maneira a acolherem-na melhor para viverem plenamente em comunhão com Deus. Para este fim, é evidentemente necessário que o próprio exegeta perceba nos textos a palavra divina, e isto não lhe é possível senão se o seu trabalho intelectual for alimentado por um impulso de vida espiritual.

Faltando este fundamento, a investigação exegética permanece incompleta; perde de vista a sua finalidade principal e limita-se a tarefas secundárias. Pode mesmo tornar-se uma espécie de evasão. O estudo científico apenas dos aspectos humanos dos textos pode fazer esquecer que a palavra de Deus convida cada um a sair de si mesmo para viver na fé e na caridade.

A encíclica Providentissimus Deus recordava, a este propósito, o carácter particular dos Livros Sagrados e a exigência que daí resulta para a sua interpretação: « Os Livros Sagrados — declarava ela — não podem ser comparados com os escritos ordinários mas, dado que foram ditados pelo próprio Espírito Santo e têm um conteúdo de extrema gravidade, misterioso e difícil sob muitos aspectos, precisamos sempre, para os compreender e os explicar, da vinda deste mesmo Espírito Santo, ou seja, da sua luz e da sua graça, que é evidentemente necessário pedir numa humilde oração e conservar mediante uma vida consagrada » (E.B., 89). Numa fórmula mais breve, tomada de Santo Agostinho, a Divino afflante Spiritu exprimia a mesma exigência: « Orent ut intellegant! » (E.B., 569).

Sim, para chegar a uma interpretação inteiramente válida das palavras inspiradas pelo Espírito Santo, é preciso que cada um seja guiado pelo Espírito Santo e, para isto, é necessário rezar, rezar muito, pedir na oração a luz interior do Espírito, e acolher docilmente esta luz, pedir o amor, o único que torna capaz de compreender a linguagem de Deus, que « é amor » (1 Jo 4,8.16). Durante o próprio trabalho de interpretação, é necessário manter-se o mais possível na presença de Deus.

10. A docilidade ao Espírito Santo produz e reforça outra disposição, necessária para a justa orientação da exegese: a fidelidade à Igreja. O exegeta católico não alimenta a ilusão individualista a qual leva a crer que, fora da comunidade dos crentes, se pode compreender melhor os textos bíblicos. O contrário é que é verdade, porque estes textos não foram dados aos investigadores individualmente, « para a satisfação da sua curiosidade ou para lhes fornecer assuntos de estudo e de investigação » (Divino afflante Spiritu: E.B., 566); eles foram confiados à comunidade dos crentes, à Igreja de Cristo, para alimentar a fé e guiar a vida de caridade. O respeito desta finalidade condiciona a validade da interpretação. A Providentissimus Deus recordou esta verdade fundamental e observou que, longe de impedir a investigação bíblica, o respeito deste elemento favorece-lhe o autêntico progresso (cf E.B., 108-109). É confortante verificar que estudos recentes de filosofia hermenêutica trouxeram uma confirmação a este modo de ver e que exegetas de diversas confissões trabalharam em perspectivas análogas, salientando, por exemplo, a necessidade de interpretar cada texto bíblico como fazendo parte do cânon das Escrituras reconhecido pela Igreja, ou estando mais atentos aos contributos da exegese patrística.

Ser fiel à Igreja significa, com efeito, situar-se resolutamente na corrente da grande Tradição que, sob a orientação do Magistério, certo duma assistência especial do Espírito Santo, reconheceu os escritos canónicos como palavra dirigida por Deus ao seu povo e nunca cessou de os meditar e de descobrir as suas inesgotáveis riquezas. O Concílio Vaticano II ainda afirmou: « Todas estas coisas, referentes à interpretação da Escritura, estão sujeitas, em última análise, ao juízo da Igreja, que exerce o divino mandato e o ministério de guardar a palavra de Deus » (Dei Verbum, 12).

Não é menos verdade — é ainda o Concilio que o declara, tomando uma afirmação da Providentissimus Deus — que « é dever dos exegetas trabalhar... para entenderem e exporem perfeitamente o sentido da Sagrada Escritura, a fim de que, como por meio dum estudo preparatório, amadureça o juizo da Igreja » (Dei Verbum, 12; cf Providentissimus Deus: E.B., 109: « ut, quasi praeparato studio, iudicium Ecclesiae maturetur »).

11. Para desempenharem melhor esta tarefa edesial muito importante, os exegetas devem ter a peito permanecer próximos da pregação da palavra de Deus, quer consagrando uma parte do seu tempo a este ministério, quer mantendo relações com aqueles que o exercem e ajudando-os com publicações de exegese pastoral (cf. Divino afflante Spiritu, E.B., 551). Eles evitarão, assim, de se perderem nos meandros duma investigação científica abstracta, que os afastaria do verdadeiro sentido das Escrituras. Com efeito, este sentido não é separável da finalidade dos mesmos, a qual consiste em pôr os crentes em relação pessoal com Deus.

III. O novo documento da Comissão Bíblica

12. Nesta perspectiva — a Providentissimus Deus afirmava — « um vasto campo de investigação está aberto ao trabalho pessoal de cada exegeta » (E.B., 109). Cinquenta anos mais tarde, a Divino afflante Spiritu renovava, em termos diferentes, a mesma verificação estimulante: « Permanecem, pois, muitos pontos, e alguns muito importantes, na discussão e na explicação dos quais a penetração do espírito e o talento dos exegetas católicos podem e devem exercer-se livremente » (E.B., 565).

O que era verdade em 1943 ainda o é nos nossos dias, porque o progresso das investigações trouxe soluções para certos problemas e, ao mesmo tempo, novas questões a estudar. Na exegese, como noutras ciências, quanto mais se abrem as fronteiras do desconhecido, tanto mais se alarga o campo a explorar. Menos de cinco anos após a publicação da Divino afflante Spiritu, a descoberta dos manuscritos de Qumrân iluminava com uma nova claridade um grande número de problemas bíblicos e abria outros campos de investigações. Depois, muitas descobertas foram feitas e novos métodos de investigação e de análise foram elaborados.

13. Foi esta mudança de situação que tornou necessário um novo exame dos problemas. A Pontifícia Comissão Bíblica dedicou-se a esta tarefa e apresenta hoje o fruto do seu trabalho, intitulado A interpretação da Bíblia na Igreja.

O que impressionará à primeira vista neste documento, é a abertura de espírito com que foi concebido. Os métodos, as abordagens e as leituras usados hoje na exegese são examinados e, apesar de algumas reservas por vezes graves, que é necessário exprimir, reconhece-se, em quase cada um deles, a presença de elementos válidos para uma interpretação integral do texto bíblico.

Porque a exegese católica não tem um método de interpretação próprio e exclusivo mas, começando pela base histórico-crítica, isenta de pressupostos filosóficos ou de outros, contrários à verdade da nossa fé, ela utiliza todos os métodos actuais, procurando em cada um a « semente do Verbo ».

14. Outro traço característico desta síntese é o seu equilíbrio e a sua moderação. Na sua interpretação da Bíblia, sabe harmonizar a diacronia e a sincronia, reconhecendo que as duas se completam e são indispensáveis para fazer ressaltar toda a verdade do texto e para dar satisfação às legitimas exigências do leitor moderno.

Mais importante ainda, a exegese católica não dedica só a sua atenção aos aspectos humanos da revelação bíblica, o que é por vezes o erro do método histórico-crítico, nem apenas aos aspectos divinos, como quer o fundamentalismo; ela esforça-se em pôr em luz uns e outros, unidos na divina « condescendência » (Dei Verbum, 13), que está na base da Escritura inteira.

15. Poder-se-á, por fim, perceber o acento posto neste documento sobre o facto que a Palavra bíblica activa se dirige universalmente, no tempo e no espaço, a toda a humanidade. Se « as palavras de Deus [...] se tornam semelhantes à palavra humana » (Dei Verbum, 13), é para serem ouvidas por todos. Não devem permanecer distantes, « acima das tuas forças nem fora do teu alcance. [...] não, elas estão muito perto de ti: estão na tua boca e no teu coração; e tu as podes cumprir » (Dt 30, 11.14).

Tal é a finalidade da interpretação da Bíblia. Se a tarefa primária da exegese é alcançar o sentido autêntico do texto sagrado ou mesmo os seus diferentes sentidos, é preciso em seguida que ela comunique este sentido ao destinatário da Sagrada Escritura que é, se possível, toda a pessoa humana.

A Bíblia exerce a sua influência no curso dos séculos. Um processo constante de actualização adapta a interpretação à mentalidade e à linguagem contemporâneas. O carácter concreto e imediato da linguagem bíblica facilita grandemente esta adaptação, mas a sua radicação numa cultura antiga causa mais do que uma dificuldade. E preciso, pois, traduzir de novo e sem cessar o pensamento bíblico na linguagem contemporânea, para que ele seja expresso duma maneira adequada aos ouvintes. Esta tradução deve, contudo, ser fiel ao original, e não pode forçar os textos para os adaptar a uma leitura ou a uma tendência em voga num dado momento. E preciso mostrar todo o brilho da palavra de Deus, mesmo se ela é « expressa por línguas humanas » (Dei Verbum, 13).

A Bíblia está hoje difundida em todos os continentes e em todas as nações. Mas para que a sua acção seja profunda, é preciso que ela tenha ali uma inculturação segundo a índole própria de cada povo. Talvez as nações menos marcadas pelos desvios da civilização ocidental moderna compreendam mais facilmente a mensagem bíblica do que as que já são insensíveis à acção da Palavra de Deus, devido à secularização e aos excessos da demitização. Nos nossos tempos, é necessário um grande esforço, não só da parte dos sábios e dos pregadores, mas também dos divulgadores do pensamento bíblico: eles devem utilizar todos os meios possíveis — e hoje há muitos! — para que o alcance universal da mensagem bíblica seja largamente reconhecido e a sua eficácia salvífica possa manifestar-se em toda a parte.

Graças a este documento, a interpretação da Bíblia na Igreja poderá encontrar um novo impulso, para o bem do mundo inteiro, a fim de fazer resplandecer a verdade e exaltar a caridade, nas proximidades do Terceiro Milénio.

Conclusão

16. Ao terminar, tenho a alegria, como os meus predecessores Leão XIII e Pio XII, de poder apresentar aos exegetas católicos, e em particular a vós, membros da Pontifícia Comissão Bíblica, tanto agradecimentos como encorajamentos.

Agradeço-vos cordialmente o excelente trabalho que realizais ao serviço da palavra de Deus e do Povo de Deus: trabalho de investigação, de ensino e de publicação; ajuda dada à teologia, A. liturgia da Palavra e ao ministério da pregação; iniciativas que favorecem o ecumenismo e as boas relações entre cristãos e judeus; participação nos esforços da Igreja para responder às aspirações e às dificuldades do mundo moderno.

A isto, uno os meus calorosos encorajamentos para a nova etapa a percorrer. A complexidade crescente da tarefa requer esforços de todos e uma larga colaboração interdisciplinar. Num mundo onde a investigação científica adquire mais importância em numerosos campos, é indispensável que a ciência exegética se situe a um nível idêntico. E um dos aspectos da inculturação da fé que faz parte da missão da Igreja, em união com o acolhimento do mistério da Encarnação.

Jesus Cristo, Verbo de Deus Encarnado, vos guie nas vossas investigações, Ele que abriu o espírito dos seus discípulos à compreensão das Escrituras (Lc 24,45)! A Virgem Maria vos sirva de modelo não só pela sua generosa docilidade à palavra de Deus, mas também, e primeiramente, pelo seu modo de aceitar o que lhe tinha sido dito! São Lucas narra-nos que Maria meditava no seu coração as palavras divinas e os acontecimentos que se realizavam « symballousa en tê kardia autês! » (Lc 2,19). Pelo seu acolhimento da Palavra, ela é o Modelo e a Mãe dos discípulos (cf Jo 19, 27). Ensine-vos ela, pois, a acolher plenamente a Palavra de Deus, não só com a investigação intelectual, mas também com toda a vossa vida!

Para que o vosso trabalho e a vossa acção contribuam cada vez mais para fazer resplandescer a luz das Escrituras, dou-vos de todo o coração a minha Bênção Apostólica.

 

 © Copyright 1993 - Libreria Editrice Vaticana

 



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