Index   Back Top Print

[ EN  - PT ]

DISCURSO DO PAPA JOÃO PAULO II
AO NOVO EMBAIXADOR DA FRANÇA
JUNTO À SANTA SÉ POR OCASIÃO
DA APRESENTAÇÃO DAS CARTAS CREDENCIAIS

 

 

Senhor Embaixador

1. É com grande prazer que lhe dou as boas-vindas no momento em que apresenta as Cartas que o acreditam como Embaixador da França junto da Santa Sé. Sensibiliza-me o espírito com que Vossa Excelência inicia a sua missão, manifestando uma atenção particular à acção espiritual e diplomática da Sé Apostólica, e a preocupação por dar um contributo específico aos passos propostos pela Igreja por ocasião do Grande Jubileu do Ano 2000. De facto, é importante que os numerosos peregrinos possam ser acolhidos em Roma, a fim de aproveitarem desse ano de graça para reencontrarem mais profundamente Cristo, fonte de vida.

A sua presença hoje aqui recorda-me com alegria as minhas recentes viagens no seu País; sobretudo, conservo uma recordação comovida das últimas Jornadas mundiais da Juventude. Mediante o seu acolhimento caloroso, os governantes do seu País e todos os seus compatriotas consentiram o êxito deste encontro, excepcional pelo número de participantes e pela qualidade humana e espiritual dos encontros e das celebrações. Tenho a certeza de que os jovens que foram à França, regressaram aos seus Países transformados pelo Senhor, prontos a testemunhar a Boa Nova que descobriram durante esses dias de particular intensidade e desejosos de continuar a viver em espírito de fraternidade e de solidariedade que animou todos os encontros.

2. Vossa Excelência, Senhor Embaixador, quis ressaltar os vínculos de confiança existentes entre a Santa Sé e a França, evocando com franqueza algumas etapas importantes da história dos últimos cinco séculos. As actuais relações, fruto desta longa história, caracterizam-se pelo princípio da laicidade. Como eu ressaltava por ocasião da minha visita ao Parlamento Europeu a 11 de Outubro de 1988, o princípio, recordado por Cristo, da distinção entre «o que é de César» e «o que é de Deus» (cf. Mt 22, 21) governa fundamentalmente a vida pública: «Esta distinção essencial entre a esfera da administração do conjunto exterior da cidade terrestre e a da autonomia das pessoas, é esclarecida a partir da respectiva natureza da comunidade política à qual necessariamente pertencem todos os cidadãos, e da comunidade religiosa a que aderem livremente os crentes» (Ed. port. de L'Osser. Rom., 23.X.1988, pág. 12, n. 9). A laicidade deve ser entendida como autonomia da sociedade civil e das confissões religiosas, nos âmbitos que lhes são próprios, mas ao mesmo tempo, como um reconhecimento do facto religioso, da instituição eclesial e da experiência cristã entre os componentes da nação, e não simplesmente como elementos da vida privada. O próprio princípio de laicidade não exclui nem a livre adesão de fé das pessoas, nem a aceitação da dimensão religiosa no património nacional. A legítima autonomia das realidades terrestres já não permite que se prescinda dos princípios sobre os quais se baseia a vida pessoal e social. Por conseguinte, a laicidade deixa a cada instituição, na sua própria esfera, o lugar que lhe compete, num diálogo franco em vista duma colaboração frutuosa no serviço de todos os homens. Uma separação bem compreendida entre a Igreja e o Estado leva ao respeito da vida religiosa e dos símbolos mais profundos, e a uma justa consideração das decisões e do pensamento religioso. Não é só uma garantia da liberdade das pessoas e dos grupos humanos, mas é também um apelo para que o que pertence à Igreja possa permanecer um elemento de reflexão para todos e um contributo positivo para os debates da sociedade, em vista da promoção e do respeito das pessoas, bem como da consideração do bem comum e dos direitos do homem, que são os elementos objectivos que jamais se podem perder de vista nas decisões sociais.

3. No campo filosófico, cultural e artístico, a religião cristã deu e continua a oferecer o seu contributo à civilização, sobretudo em nações como a sua, na qual ela faz parte da tradição plurissecular. O humanismo é um ideal comum a todos os Franceses, o qual recorda que não há nada tão bom nem tão nobre como o homem, cuja superioridade consiste na sua existência como um ser racional, que «tem uma dignidade absoluta, porque está em directa relação com o absoluto», como ressaltava um dos seus ilustres predecessores, Jacques Maritain (Les droits de l'homme e la loi naturelle, pág. 16). A nível da vida social, os valores cristãos, que para alguns já se encontravam no mundo grego e latino, fazem parte da herança comum. Mediante as reflexões que faz actualmente, o centro cultural da sua Embaixada faz sobressair este património de maneira eloquente.

4. Vossa Excelência está ao corrente da atenção que a Igreja dedica à vida dos homens, sobretudo às instituições primordiais como a da família, a qual só pode existir no respeito dos princípios naturais e do bem da sociedade inteira, sendo ela um elemento essencial da nação. É de igual modo necessário que os responsáveis saibam criar as condições adequadas para a sua natureza específica e o seu estatuto jurídico peculiar, e as bases necessárias para a sua estabilidade, a fortificação do vínculo conjugal e o acolhimento do dom da vida. As crianças são a primeira riqueza dum país; por conseguinte, seria bom ajudar os pais a cumprir a sua missão educativa, no respeito das suas responsabilidades específicas e da necessária subsidiariedade, consolidando desta forma o valor insigne deste serviço. É um dever e uma solidariedade legítima por parte de toda a comunidade nacional.

5. No campo da educação, aprecio a reflexão feita no seu País acerca da questão da organização do tempo escolar, a fim de proporcionar aos jovens uma formação equilibrada, respeitadora das suas capacidades e do desenvolvimento progressivo da sua personalidade, e de fazer com que eles adquiram uma cultura e um saber que lhes permita encontrar o seu lugar na sociedade. Sensibilizam-me também os esforços feitos por numerosos professores, nas escolas públicas e privadas, a fim de apresentar aos jovens franceses elementos de educação cívica e de cultura religiosa que fazem parte do seu património.

Por conseguinte, para os pais que o desejam, a catequese é outra disciplina. Ela consiste essencialmente em iniciar a criança no mistério cristão e na relação com Deus. A formação religiosa faz parte integrante da formação humana, espiritual e moral daqueles jovens cujos pais desejam que aprendam os valores cristãos e conheçam Cristo. Para isso, é preciso que cada família seja apoiada no seu desejo legítimo e possa ter meios positivos para fazer com que os seus filhos recebam o ensinamento catequético do qual têm necessidade. Nesta perspectiva, não se pode deixar de desejar que os responsáveis da nação continuem a estar vigilantes a respeito do lugar que o ensino religioso ocupa entre as actividades para-escolares propostas às crianças e do tempo conveniente que poderá ser consentido. Por conseguinte, faço um sentido apelo à atenção renovada dos diferentes protagonistas, para que «sejam tomadas todas as disposições úteis, a fim de garantir aos alunos do ensino público a liberdade dos cultos e de instrução religiosa», de acordo com a lei de 1959 e a circular de 24 de Abril de 1991, sem penalizar as crianças e as famílias que optam pela formação religiosa.

6. Vossa Excelência conhece o desejo da Igreja de oferecer o seu contributo à formação da juventude, em colaboração confiante com outras instituições que têm a mesma finalidade, graças ao diálogo entre todas as partes em causa. A comunidade católica sente-se parte integrante desta grande causa nacional, pois a escola é uma instituição de primeiro plano para a edificação da sociedade, favorecendo a paz social e refreando os fenómenos de violência. Neste espírito, sensibiliza-me o apoio dado pelas Autoridades francesas ao ensino católico, que deseja continuar a prestar um serviço educativo no seio da nação, acolhendo todos os jovens que as famílias lhe desejam confiar, sem distinção de origem, opinião ou crença, mas no respeito legítimo do carácter e da vocação específicas dos seus estabelecimentos. De acordo com quanto exprimem claramente os seus Estatutos, a Escola católica não pode, de facto, «renunciar à sua liberdade de propor a mensagem cristã e de expor os valores da educação cristã». Para esta missão, é necessário que a colectividade não penalize demasiado as famílias que escolhem o ensino católico. Com efeito, é justo que, no âmbito da educação nacional, seja mantida uma legítima igualdade, porque as diferenças são causa de separações prejudiciais no seio da sociedade, no momento em que o sistema educativo desempenha o importante papel de comunidade integrativa para todos os jovens, particularmente necessário nos ambientes desfavorecidos.

7. A França possui uma tradição de convivência social, abertura, auxílio mútuo e de respeito e acolhimento em favor dos países em vias de desenvolvimento e a respeito das pessoas e das famílias deslocadas ou constrangidas ao exílio. Aprecio as disposições manifestadas pelos responsáveis da vida pública, a fim de oferecer uma terra àqueles que a pedem, no respeito dos princípios que fundam a unidade nacional. É importante que os países mais ricos se mobilizem para acolher, com discernimento, humanidade e solicitude, e num espírito de solidariedade perante situações por vezes dramáticas, as pessoas que provêm de outras terras e que são obrigadas a procurar neles o alimento para si e para a sua família, ou que devem refugiar-se num país que não é o seu; estes estrangeiros são antes de mais irmãos e ninguém os pode pôr de lado por motivos de raça ou de religião. Congratulo-me com as numerosas associações do seu País que ajudam quantos são muitas vezes marginalizados, estando atentos às suas necessidades primordiais.

 8. No momento em que nos preparamos para entrar no Terceiro Milénio, a França, que é a sede duma alta instância europeia, ocupa um lugar particular na construção da grande Europa, na qual as nações que o desejam poderão pouco a pouco associar-se na edificação da casa comum, a fim de criar as condições necessárias ao desenvolvimento de todos e valorizar as riquezas particulares. Este novo espaço europeu não pode deixar de favorecer a paz e o entendimento entre todos os povos, no respeito das particularidades, postas ao serviço de todos, para que jamais se voltem a repetir as guerras e as fracturas que marcaram o século XX. De igual modo, não posso deixar de partilhar a seu desejo de que as Autoridades francesas, em estreita união com os outros países do continente e com a comunidade internacional, continuem a incrementar os esforços para que todos os meios legítimos e pacíficos sejam postos em prática, a fim de resolver de modo duradouro os diferentes conflitos que Vossa Excelência acaba de mencionar, pois nenhum Estado pode desinteressar-se daquilo que vivem os povos menosprezados na sua dignidade primária e constrangidos à incerteza. Nestes diferentes focos de tensão, é necessário que as partes envolvidas tenham um forte desejo e uma coragem profética de encontrar soluções, lá onde, mesmo se cada um é necessariamente obrigado a abandonar as prerrogativas, é o bem de todos o elemento que deve prevalecer sobre as considerações de parte.

Imploro o Senhor a fim de que o aproximar-se do fim do Milénio estimule à conversão dos corações e reavive em todos os homens o amor pela paz. Todos, seja qual for a sua raça e origem, devem poder beneficiar duma terra onde viver em paz e fazer viver aqueles dos quais se ocupam. A Santa Sé encoraja as negociações pacientes e tenazes, orientadas para um reconhecimento legítimo dos povos e duma paz sólida entre as nações. São estes os objectivos durante os próximos anos, na Europa e em todos os Continentes. Com o desejo de manter a paz, congratulo-me com a atitude corajosa da França e doutras Nações, pela decisão a respeito das minas anti-homem, a fim de que os seres inocentes não sejam ainda mais injustamente mutilados e a terra sirva para alimentar quantos a habitam.

9. No final do nosso encontro, ficar-lhe-ia reconhecido por se dignar transmitir os meus melhores votos a Sua Excelência o Senhor Presidente Jacques Chirac, o qual tive a alegria de receber aqui há dois anos. No seu País como em numerosos outros, os homens são confrontados com graves crises económicas e sociais, em particular o desemprego que atinge inteiras famílias. Nas adversidades, é fundamental que todos os membros da comunidade nacional demonstrem uma solidariedade e uma caridade cada vez maiores, tendo o coração aberto para responder aos desafios humanos. Por conseguinte, desejaria recordar a todos os seus compatriotas que permaneço pessoalmente próximo deles e que sou de modo particular sensível às dificuldades de quantos são atingidos pela crise. Por fim, desejo saudar por seu intermédio todos os católicos da França.

Senhor Embaixador, Vossa Excelência inscreve-se numa longa e prestigiosa tradição. Permita-me também manifestar-lhe toda a minha estima e apresentar-lhe os meus mais cordiais votos para a realização da sua missão. Tenha a certeza que encontrará sempre junto dos meus colaboradores a atenção e o apoio dos quais poderá ter necessidade. Rezo a Deus para que o povo da França aceite o desafio que lhe é feito: entrar no Terceiro Milénio com uma consciência renovada da sua vocação humana e espiritual, aprofundando as suas raízes filosóficas e cristãs. Concedo-lhe muito cordialmente a Bênção apostólica, bem como a quantos são chamados a colaborar na sua tarefa.

 

 

© Copyright 1998 - Libreria Editrice Vaticana

 



Copyright © Dicastero per la Comunicazione - Libreria Editrice Vaticana