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MEDITAÇÕES DE PAULO VI

PENSAMENTO DA MORTE (*)

 

 

"Tempus resolutionis meae instat". Chegou o tempo de recolher as velas (1).

"Certus quod velox est depositio tabernaculi mei". Estou certo que daqui a pouco terei de sair desta minha tenda (2). "Finis venit, venit finis". O fim! Chega o fim (3).

Esta consideração óbvia, sobre a precariedade da vida temporal e sobre o aproximar-se inevitável e cada vez mais perto do seu fim, impõe-se. Não é prudente a cegueira diante de tal sorte inevitável, diante da desastrosa ruína que leva consigo, diante da misteriosa metamorfose que está para realizar-se no meu ser, diante do que se prepara.

Vejo a consideração dominante tornar-se extremamente pessoal — eu, quem sou? que fica ainda de mim? para onde vou? — e por isso extremamente moral — que devo fazer? quais são as minhas responsabilidades? E vejo também que, a respeito da vida presente, é inútil ter esperanças; a respeito dela, têm-se deveres e expectativas funcionais e momentâneas; as esperanças são para o além.

E vejo que esta suprema consideração não pode realizar-se num monólogo subjectivo, no habitual drama humano que, ao crescer a luz, faz crescer a obscuridade do destino humano; deve realizar-se em diálogo com a Realidade divina, donde venho e para onde certamente vou; segundo a lamparina que nos põe Cristo na mão para a grande passagem. Creio, ó Senhor.

Vem a hora. Disso tenho o pressentimento há tempos. Mais ainda que o cansaço físico, pronto a ceder a qualquer momento, o drama das minhas responsabilidades parece sugerir como solução providencial o meu êxodo deste mundo, para a Providência poder manifestar-se e levar a Igreja a melhores venturas. A Providência tem, sim, muitos modos para intervir no jogo formidável das circunstâncias, que apertam o meu pouco valer; mas o da minha chamada para a outra vida parece óbvio, para outro comparecer mais válido e não detido pelas dificuldades presentes. "Servus inutilis sum". Sou servo inútil.

"Ambulate dum lucem habetis". Andai enquanto tiverdes luz (4).

Gostaria, ao terminar, de estar na luz. Ordinariamente o fim da vida temporal, se não é obscurecido por enfermidades, tem uma sua claridade apenas fosca: a das memórias, tão belas, tão atraentes, tão saudosas, e tão claras agora para denunciarem o seu passado irrecuperável e para fazerem rir ao serem evocadas sem esperanças. Há a luz que desvela a desilusão duma vida fundada sobre bens efémeros e esperanças falazes.

Há a de obscuros e agora ineficazes remorsos. Há a da sabedoria que finalmente entrevê a vaidade das coisas e o valor das virtudes que deviam caracterizar o decurso da vida: "vanitas vanitatum". Vaidade das vaidades. Quanto a mim, gostaria finalmente de ter uma noção recapituladora e esclarecida sobre o mundo e sobre a vida: julgo que tal noção deveria exprimir-se em reconhecimento: tudo era dom, tudo era graça; e como era belo o panorama através do qual se passou; demasiado belo, tanto que nos deixámos atrair e deslumbrar, quando devia parecer sinal e convite. Mas, seja como for, parece que a despedida deve exprimir-se num grande e simples acto de reconhecimento, mesmo de gratidão: esta vida mortal é, apesar das suas tribulações, dos seus obscuros mistérios, dos seus sofrimentos e da sua fatal caducidade, um facto belíssimo, um prodígio sempre original e comovedor, um acontecimento digno de ser cantado em gozo e em glória: a vida, a vida do homem! Nem menos digno de exaltação e de feliz espanto é o quadro que circunda a vida do homem: este mundo imenso, misterioso e magnífico, este universo de mil forças, de mil leis, de mil belezas e de mil profundidades. É panorama encantador. Parece prodigalidade sem medida. Juntar-se, a este olhar quase retrospectivo, a amargura de não ter admirado suficientemente este quadro, de não ter observado, quanto o mereciam, as maravilhas da natureza, as riquezas surpreendentes do macrocosmos e do microcosmos. Porque não estudei suficientemente, não explorei e não admirei a sala em que decorre a vida? Que imperdoável distracção, que reprovável superficialidade! Todavia, pelo menos "in extremis", deve-se reconhecer que aquele mundo "qui per Ipsum factus est", que foi feito por meio d'Ele, é magnífico. Saúdo-te e celebro-te no último instante, sim, com imensa admiração; e, como dizia, com gratidão: tudo é dom; atrás da vida, atrás da natureza e do universo, está a Sabedoria; e depois, di-lo-ei nesta despedida luminosa, Tu no-lo revelaste, ó Cristo Senhor está o Amor! A cena do mundo é um desígnio, hoje ainda incompreensível na sua maior parte, dum Deus Criador, que se chama o nosso Pai que está nos céus! Obrigado, ó Deus obrigado; e glória a Ti, ó Pai! Neste último olhar dou-me conta de esta cena, fascinadora e misteriosa, ser um revérbero, um reflexo da primeira e única Luz; é revelação natural de extraordinária riqueza e beleza, que devia ser iniciação, prelúdio, antecipação e convite para a visão do invisível Sol, "quem nemo vidit unquam", que ninguém viu nunca (5): "unigenitus Filius, qui est in sinu Patris, Ipse enarravit", o Filho unigénito, que está no seio do Pai, Ele o revelou. Assim seja, assim seja.

Mas agora, neste pôr do sol revelador, outro pensamento — além do da última luz da tarde, presságio da eterna aurora — ocupa o meu espírito: é a ânsia de aproveitar a undécima hora, a pressa de fazer alguma coisa de importante antes que seja tarde demais. Como reparar as acções mal feitas, como recuperar o tempo perdido, como agarrar, nesta última possibilidade de escolha, o "unum necessarium", a única coisa necessária?

À gratidão sucede o arrependimento. Ao grito de glória, para Deus Criador e Pai, sucede o grito que invoca misericórdia e perdão. Isto pelo menos saiba-o eu fazer: invocar a Tua bondade, e confessar com a minha culpa a Tua infinita capacidade de salvar. "Kyrie eleison; Christe eleison; Kyrie eleison". Senhor piedade; Cristo piedade; Senhor piedade.

Vem aqui à memória a pobre história da minha vida, entrançada, por um lado, pela urdidura de singulares e inumeráveis benefícios, derivados duma inefável bondade (é esta que espero poder um dia ver e cantar eternamente); e, por outro, atravessada por uma trama de acções míseras, que seria preferível não recordar, tanto são faltosas, imperfeitas, erradas, insipientes e ridículas. "Tu seis insipientiam meam". Deus, Tu conheces a minha insipiência. Pobre vida trabalhosa, avara e mesquinha, tão necessitada de paciência, de reparação e de infinita misericórdia. Sempre me parece sem igual a síntese de Santo Agostinho: "miseria et misericordia". Miséria minha, misericórdia de Deus. Consiga eu, ao menos agora, honrar Quem Tu és, ó Deus de infinita bondade, invocando, aceitando e celebrando a Tua dulcíssima misericórdia.

E depois um acto, finalmente, de boa vontade: já não olhar para trás, mas cumprir de boa vontade, simplesmente, humildemente e fortemente, o dever, que resulta das circunstâncias em que me encontro, como Tua vontade.

Cumprir depressa. Cumprir tudo. Cumprir bem. Cumprir com alegria o que agora Tu queres de mim, mesmo que supere imensamente as minhas forças e, se ma pedes, a vida. Finalmente, nesta hora última.

Curvo a cabeça e levanto o espírito. Humilho-me a mim mesmo e exalto-Te a Ti, Deus, "cuja natureza é bondade" (São Leão). Permite que, nesta última vigília, eu preste homenagem a Ti, Deus vivo e verdadeiro, que amanhã serás o meu juiz, e que Te dê o louvor que mais ambicionas, o nome que preferes: és Pai.

Depois eu penso, aqui diante da morte, mestra da filosofia da vida, que o acontecimento maior entre todos foi para mim, como o é para quantos têm igual fortuna, o encontro com Cristo, a Vida. Tudo precisaria de ser meditado de novo com a clareza reveladora, que a lâmpada da morte dá a tal encontro. "Nihil enim nobis nasci profuit, nisi redimi , profuisset" De nada, de facto, nos teria valido nascer se não nos tivesse servido para sermos remidos. Esta é a descoberta do préconio, pascal, e este é o critério de valorização de todas as coisas respeitantes à existência humana em seu verdadeiro e único destino, que se determina apenas em ordem a Cristo: "o mira circa nos tuae pietatis dignatio!", ó maravilhosa piedade do teu amor para connosco! Maravilha das maravilhas, o mistério da nossa vida em Cristo. Aqui a fé, aqui a esperança, aqui o amor cantam o nascimento e celebram as exéquias do homem. Eu creio, eu espero, eu amo, no Teu nome, ó Senhor.

E depois pergunto-me ainda: porque me chamaste, porque me escolheste? tão inepto, tão renitente, tão pobre de espírito e de coração? Bem sei "quae stulta sunt mundi elegit Deus... ut non glorietur omnis caro in conspectu eius" Deus escolheu o que no mundo é fraco... para nenhuma pessoa poder gloriar-se diante de Deus" (6). A minha eleição indica duas coisas: o meu pouco valor; a Tua liberdade, misericordiosa e potente. Esta não se deteve nem sequer diante das minhas infidelidades, da minha miséria, da minha capacidade de atraiçoar-Te. "Deus meus, Deus meus, audebo dicere... in quodam aestatis tripudio de Te praesumendo dicam: nisi quia Deus es, iniustus essem, quia peccavimus graviter... et Tu placatus es. Nos Te provocamus ad iram, Tu autem conduces nos ad misericordiam!". Meu Deus, meu Deus, atrever-me-ei a dizer... num extático tripúdio direi de Ti com presunção: se não fosses Deus, serias injusto, porque pecámos gravemente... e Tu Te aplacas. Nós provócamos-Te à ira, e Tu em troca conduzes-nos à misericórdia!" (7).

E eis-me aqui ao Teu serviço, eis-me aqui no Teu amor. Eis-me num estado de sublimação, que já não me consente recair na minha psicologia instintiva de pobre homem, senão para recordar-me da realidade do meu ser, e para reagir na mais ilimitada confiança com a resposta que é devida por mim: "amen; fiat; Tu scis quia amo Te", assim seja, assim seja. Tu sabes que Te quero bem. Sucede um estado de tensão e fixa num acto permanente de absoluta fidelidade a minha vontade de serviço por amor: "in finem dilexit", amou até ao fim. "Ne permittas me separari a Te". Não permitas que eu me separe de Ti. O pôr do sol da vida presente, que desejaria fosse sossegado e sereno, deve ser pelo contrário esforço crescente de vigília, de dedicação e de expectativa. É difícil; mas é assim que a morte assinala a meta da peregrinação terrena, e constitui a ponte para o grande encontro com Cristo na vida eterna. Recolho as últimas forças, e não volto atrás do dom total realizado pensando no Teu "consummatum est", tudo está terminado.

Recordo o anúncio antecipado do Senhor a Pedro, sobre a morte do apóstolo:. "amen, amen dico tibi... cum... senueris, extendes manus tuas, et alius te cinget, et ducet quo tu non vis". Hoc autem (Jesus) dixit significans qua morte (Petrus) clarificaturus esset Deum. Et, cum hoc dixisset, dicit ei: "sequere me". Em verdade, em verdade te digo... quando fores velho, estenderás as tuas mãos e outro te cingirá e te levará aonde tu não queres. Disse-lhe isto para indicar com que morte Ele glorificaria a Deus. E, dito isto, acrescentou: "Segue-me" (8).

Sigo-te; e noto que não posso sair ocultamente da cena deste mundo; ligam-me mil fios à família humana, e à comunidade que é a Igreja. Estes fios quebrarão por si; mas não posso esquecer que eles requerem de mim um último dever. "Discessus pius", morte piedosa, terei diante do espírito a memória de como Jesus se despediu da cena temporal deste mundo. É de recordar como Ele teve contínua previsão e frequentemente anunciou a sua paixão, como mediu o tempo que faltava para a "sua hora", como a consciência dos destinos escatológicos encheu o seu espírito e o seu ensinamento, e como da sua morte iminente falou aos discípulos nos discursos da última ceia; e finalmente como quis que a sua morte fosse perenemente comemorada mediante a instituição do sacrifício eucarístico: "mortem Domini annuntiabitis donec veniat". Anunciareis a morte do Senhor até que Ele venha.

Um aspecto principal acima dos outros: "tradidit semetipsum", entregou-se a si mesmo por mim; a sua morte foi sacrifício; morreu pelos outros; morreu por nós. A solidão da sua morte foi cheia da nossa presença, foi penetrada de amor: "dilexit Ecclesiam", amou a Igreja (recordar; "le mystère de Jésus", de Pascal). A sua morte foi por si revelação do seu amor pelos seus: "in finem dilexit", amou até ao fim. E do amor humilde e ilimitado, deu no termo da vida temporal exemplo impressionante (cfr. o lava-pés), e do seu amor fez termo de comparação e preceito final. A sua morte " foi testamento de amor. É necessário recordá-lo.

Peço portanto ao Senhor que me dê a graça de fazer da minha próxima morte dom de amor à Igreja. Poderia dizer que sempre a amei; foi o seu amor que me fez sair do meu mesquinho e selvagem egoísmo e me encaminhou para o meu serviço; e que por ela, não por qualquer outro, me parece ter vivido. Mas desejaria que a Igreja o soubesse e que eu tivesse a força de vo-lo dizer, como confidência do coração, que só no último momento da vida a gente tem a coragem de fazer. Desejaria finalmente compreendê-la toda na sua história, no seu desígnio divino, no seu destino final, na sua complexa, total e unitária composição, na sua humana e imperfeita consistência, nos seus infortúnios e nos seus sofrimentos, nas fraquezas e nas misérias de tantos filhos seus, nos seus aspectos menos simpáticos, e no seu esforço perene de fidelidade, de amor, de perfeição e de caridade. Corpo místico de Cristo. Desejaria abraçá-la, saudá-la, amá-la, em todo o ser que a compõe, em todo o Bispo e sacerdote que a assiste e a guia, em toda a alma que a vive e a ilustra; abençoá-la. Também porque não a deixo, não saio dela, mas mais e melhor, me uno com ela e me confundo: a morte é um progresso na comunhão dos Santos.

Vale a pena recordar aqui a oração final de Jesus (9). O Pai e os meus; estes são todos um; no confronto com o mal que existe sobre a terra e na possibilidade da salvação deles; na consciência suprema: era missão minha chamá-los, revelar-lhes a verdade, fazê-los filhos de Deus e irmãos entre si: amá-los com o Amor, que está em Deus, e que de Deus, mediante Cristo, veio à humanidade e do ministério da Igreja, a mim confiado, comunicado a ela.

Homens, compreendei-me; a todos vos amo na efusão do Espírito Santo, em que eu, ministro, era obrigado a fazer-vos participar. Assim olho para vós, assim vos saúdo, assim vos abençoo. A todos. E a vós, que estais mais perto de mim, mais cordialmente. A paz esteja convosco. E à Igreja, a quem tudo devo e que foi minha, que direi? As bênçãos de Deus estejam sobre ti; tem consciência da tua natureza e da tua missão; tem o sentido das necessidades verdadeiras e profundas da humanidade; e caminha pobre, isto é, livre, forte e com amor, para Cristo.

Ámen. O Senhor vem. Ámen.


1) 2 Tim. 4, 6.

2) 2 Ped. 1, 14

3) Ez. 2, 7

4) Jo. 12, 35

5) cfr. Jo. 1, 18

6) 1 Cor 1, 27-28

7) PL 40, 1150

8) Jo. 21, 18-19

9) Jo. 17.

 


(*) L'Osservatore Romano de 19 de Agosto de 1979, ed. em português



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